Como desenhar uma pop perfeita

Have You in My Wilderness volta a mostrar quão ilimitadas são as possibilidades de Julia Holter.

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Julita Holter rodeia-se de personagens que a ajudam a trilhar um caminho para cada canção claríssimo na sua cabeça TONJE THILESEN
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Quando percebe que tem nos braços uma ou mais canções “que exigem um contexto diferente” prefere “não as sobrepor à história que já existe” TONJE THILESEN

Há muito que Julia Holter assumiu este jogo de provocação com a música pop, este jogo de sedução de emitir todos os sinais de querer avançar para os seus braços para logo em seguida bater em retirada – mas apenas o suficiente para não perder o controlo, mantendo-se conscientemente no seu campo gravitacional.

Have You in My Wilderness, quarto álbum da cantora-compositora norte-americana, é a primeira vez em que Holter dá apenas um tímido passo atrás, põe fim a uma atitude mais esquiva. Como se ao ioiô que nunca deixava tocar no solo, puxando-o de volta no último instante, fosse agora concedido uma breve mas clara aterragem. Mas Julia fá-lo sem prescindir da sua tendência natural para polvilhar canções com histórias inspiradas pela literatura e espalhando por detrás de melodias que se colam aos nossos dias arranjos que são fatalmente consequentes da sua formação clássica.

Está tudo em ‘Lucette Stranded on the Island’, das composições mais belas a que alguém se pode entregar: escrevendo a partir de uma personagem secundária do conto de Colette Chance Acquaintances, uma mulher que se apaixona por um príncipe russo que a rouba, a espanca e a abandona numa ilha até a morte a reclamar, partindo, portanto, de uma história macabra, Holter atira-se para uma das suas canções mais apuradas, trauteando repetidamente “the birds can sing this song” como se nos lembrasse que, sim, está de visita ao mundo das canções simples e trauteáveis, ainda que tudo à volta, sem desmerecer esse claro epíteto pop, se vá transformando num redemoinho de vozes e instrumentos que funcionam como uma constante provocação aos sentidos.

Como se, afinal, estes vislumbres de uma pop aberta e assumida fossem os iscos lançados na nossa direcção para nos cativar para uma música que, não traindo essa chama inicial, nos levam depois para um outro lugar menos óbvio.

“É verdade”, confessa Julia Holter ao Ípsilon, “queria mesmo fazer este disco, ir ao fundo de uma sonoridade claramente pop”, intenção explicitada pelo arranque com Feel You e Silhouette. “Algumas das canções já são até algo antigas, mas há muito tempo que esperava uma oportunidade em que fizesse sentido juntá-las.” Essa oportunidade anunciou-se durante as gravações do anterior Loud City Song, quando algumas das novas criações começaram a exigir um espaço próprio, um contexto diferente daquele majestoso álbum que colocava no seu centro nevrálgico o tema Maxim’s II – composto em resposta à cena de Gigi, musical que Vincente Minnelli realizou em 1958, em que Gigi (Leslie Caron) entrava no restaurante Maxim’s e as conversas se estancavam à sua passagem. Maxim’s II, na verdade, surgiu também durante as sessões e Ekstasis e tornou evidente que Holter necessitava de todo um álbum que se desenhasse à sua volta.

Repetindo inúmeras vezes que entende o seu labor mais como o de uma contadora de histórias do que o de uma escritora de canções, Holter esculpe os seus álbuns precisamente de acordo com um fulgor narrativo. Por essa razão, quando percebe que tem nos braços uma ou mais canções “que exigem um contexto diferente” prefere “não as sobrepor à história que já existe”. Isso teria um efeito de instalar o caos em discos que obedecem a uma cuidada organização pessoal, por mais que esta possa ser pouco discernível para quem os ouve. Até porque todo este cuidado precioso na elaboração dos textos esbarra, aqui e ali, numa voz que se junta à instrumentação com uma qualidade etérea, mascarando as palavras. “Gosto sobretudo de cantar da forma como o faço”, justifica, “e não me preocupo muito se as letras são claras. Privilegio a forma como soam e prefiro que funcionem como espaços em branco em que cada um pode colocar o que quiser.”

Um álbum de baladas
Have You in My Wilderness, ainda assim, não é tão escravizado pela ideia de narrativa global quanto os discos anteriores – a ideia nuclear de Gigi em Loud City Song, a inspiração para Tragedy fundada na mitologia grega e em Hipólito, de Eurípedes, em particular. “De facto, para este disco parti com a ideia de querer fazer um álbum de baladas e procurar alcançar uma sonoridade a que chamo dourada. Foi esse o ponto de partida para cada um dos temas, em que cada canção é uma história diferente, ao contrário do que acontecia no Loud City Song”. Wilderness assemelha-se, assim, a um livro de contos levantado enquanto disco, uma parada de personagens para as quais Julia Holter escorrega com um irresistível grau de atracção e surpreendente facilidade.

Em How Long?, um brilhante e escarrapachado decalque do universo vocal de Nico mas com o nervo de Mary Margaret O’Hara e um arranjo de cordas de uma densa melancolia que se diria surripiado a Scott Walker, encontramo-la a assumir a pele de Sally Bowles, personagem do livro Goodbye to Berlin, de Christopher Isherwood. “Estava em Berlim e aconteceu estar a ler o livro e a história estava sempre presente na minha cabeça enquanto andava por lá. Foi por isso que acabou por habitar a canção”, explica. “Estava interessada pela ideia de expatriados em Berlim, condição de muitos dos amigos que tenho por lá. Eles chamam-lhe casa, àquele lugar, mas eu estava a tentar sentir-me como uma expatriada norte-americana naquela cidade.”

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As referências de Holter vêm dos lugares mais improváveis, como a deriva jazzística de Vasquez, inspirada por Tiburcio Vásquez, pistoleiro californiano de meados do século XIX que justificava a sua prática criminosa como vingança da discriminação dos brancos relativamente à população hispânica. O que acontece sempre, e que realmente interessa, é que Julita Holter se rodeia de personagens que a ajudam a trilhar um caminho para cada canção claríssimo na sua cabeça. Custa, por isso, acreditar que “algumas das canções mais antigas foram difíceis de se deixar apanhar – apaixonei-me pelas demos e foi difícil replicar esse ambiente original”, diz. Mas munida de referências como “muito Scott Walker e Joni Mitchell, Robert Wyatt e o Bob Dylan de Nashville Skyline” chegou a Have You in My Wilderness. E tal como em Loud City Song, isso não é coisa pouca.

Estará aqui, muito provavelmente, a mais entusiasmante autora de canções destes dias que vivemos, fazendo coabitar de uma maneira quase impossível a ligeireza e a densidade, a clareza pop e os assomos clássicos e jazzísticos, a certeza daquilo que uma canção pode ser sem se limitar a emular tudo aquilo que a antecedeu.

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