Com o Brexit à vista, o que poderá acontecer à vida cultural da Europa?

No arranque do Ano Britânico da Casa da Música, debateu-se este sábado o impacto que a saída do Reino Unido da União Europeia poderá ter no circuito e nas instituições culturais do país, mas também da Europa. Mais diálogo, colaboração e pressão política precisam-se – antes que seja tarde de mais.

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Numa casa decorada a rigor – eram muitos os que tiravam selfies dentro da cabine telefónica inglesa, na Casa da Música. Paulo Pimenta
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O debate de sábado Nelson Garrido
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Paulo Pimenta

Quando a direcção da Casa da Música escolheu o Reino Unido como país-tema da temporada de 2017, não imaginava o que viria a acontecer em Junho do ano passado: o referendo que deu vitória ao Brexit. O Ano Britânico da instituição portuense foi desenhado muito antes desta reviravolta política, mas acontece na mesma altura em que Inglaterra está a preparar a sua saída da União Europeia – timing que acaba por dar à programação redobrada pertinência e um certo eco político. Não é, portanto, por acaso que o debate O impacto do Brexit na vida musical britânica tenha sido um dos destaques do programa God Save The Queen!, que marcou o arranque do Ano Britânico na Casa da Música, entre quinta-feira passada e domingo, com entrada gratuita, funcionando como um resumo do que vem aí.

Numa casa decorada a rigor – eram muitos os que tiravam selfies dentro da cabine telefónica inglesa, à entrada –, a conferência teve lugar no sábado à tarde, no Corredor Nascente. Ao contrário do que antecipava o título, acabou por ir além da música e estender-se à cultura de um modo geral. Moderada por Tom Service, musicólogo especialista em música clássica e crítico do jornal The Guardian, contou com a presença de Nicholas Kenyon, director do Barbican Centre, em Londres, uma das maiores instituições culturais europeias; Cathy Graham, directora de música do British Council, em Londres; Susanna Eastburn, da direcção da Sound and Music, estrutura ligada à nova música britânica, orientada para a música contemporânea e experimental; e, fora do Reino Unido, Emmanuel Hondré, director do departamento de concertos da Philharmonie de Paris.

Todos contra o Brexit, todos a favor de uma solução colaborativa para a cultura na Europa, aconteça o que acontecer – “Brexit means Brexit”, deixou bem claro a primeira-ministra inglesa Theresa May, mas ainda não há data nem planos oficiais para o adeus definitivo à União Europeia, o que coloca a “incerteza” na ordem do dia, diz Nicholas Kenyon.

“O que pode significar o Brexit para as instituições culturais do Reino Unido, também da perspectiva da Europa?”, perguntou Tom Service, lançando assim os dados para a conversa. Na opinião de Cathy Graham, há três “desafios complexos” que representam mais do que danos colaterais: as dificuldades na mobilidade dos artistas, para dentro e para fora do país, com o fim da livre circulação; as questões relacionadas com a propriedade intelectual; o acesso a redes e fundos europeus. O aumento das burocracias na circulação e nos projectos colaborativos entre países são “preocupações reais”, reforça Nicholas Kenyon. E que podem atrofiar uma série de dinâmicas intrínsecas à actividade cultural na Europa. “O coração do nosso trabalho é colaborativo. Inclusive muitos músicos das orquestras e muitos alunos das escolas de música britânicas são de fora do Reino Unido”, lembra Cathy Graham.

Mais diálogo e menos elitismo

É preciso delinear, rapidamente, uma linha de acção para “pressionar o governo britânico” e “estabelecer acordos” antes que seja tarde de mais, afirma a directora de música do British Council. “Acho que se pode tentar negociar a questão das fronteiras e dos vistos até que se torne irreversível.” O plano passa também por “convencer os políticos” mais afastados do sector das artes da relevância social e económica do tecido cultural, nota o director do Barbican Centre. “Afinal, é uma indústria que emprega dois milhões de pessoas no Reino Unido.” Neste processo é “muito importante” ter o apoio e voz activa dos “colegas europeus”, considera Cathy Graham. “O British Council já está a iniciar diálogo com várias instituições”, revela.

“Temos de pensar em tornarmo-nos mais unidos”, acrescenta Emmanuel Hondré. Uma declaração com particular ressonância num mundo onde cresce o fervor populista e o proteccionismo, e no dia da ressaca da tomada de posse de Donald Trump, onde a visão de uma sociedade distópica se tornou bastante real e palpável (e não faltaram referências à nova presidência dos Estados Unidos, bem como à ascensão da extrema-direita de Marine Le Pen, em França). “Vivemos actualmente num mundo cheio de tensões e isso também provoca ansiedade nos músicos, sobretudo nos músicos mais jovens e freelance”, nota Susanna Eastburn. “Não pode haver um Brexit da nova música, temos de continuar a viajar além-fronteiras”, diz, assinalando a necessidade de se pensar “em novas formas de trabalhar em conjunto”, de modo a assegurar também a pluralidade de experiências e visões artísticas.

E nesse sentido importa chegar a mais públicos, inclusive “aqueles que votaram a favor do Brexit”, refere Tom Service. Não pregar aos convertidos e ir além do centralismo da capital, onde o voto contra foi um claro vencedor. “O Brexit e toda a surpresa perante o resultado do referendo revelaram também como o nosso olhar está fixado em Londres”, observa Susanna Eastburn. “E o resto? Eu sou de Cornwall, uma parte do país que votou em força a favor do Brexit, tal como alguma da minha família.” O elitismo que ainda domina várias instituições culturais e práticas artísticas é também algo a combater. “Temos de ser mais honestos. Pensar em como a cultura fala dela própria e como pode ser alienante para muitas pessoas fora da bolha”, lembra Eastburn. “Temos a obrigação de reflectir o máximo de comunidades possíveis, mas temos de ser mais honestos com aquilo que as pessoas querem realmente dizer”, admite, por sua vez, Nicholas Kenyon.

Já na recta final do debate, e a tentar encontrar algum optimismo, Tom Service falou “de um tempo de grandes oportunidades artísticas e criativas”. “Os artistas podem assumir também uma voz activa”, diz, notando o desafio particular da música clássica nesse cenário, já que a mensagem é menos imediata do que, por exemplo, na música de um universo mais pop (e teria sido pertinente ter integrado no painel músicos dos dois lados da barricada). “Não queremos pedir aos artistas para fazerem trabalhos sobre determinados assuntos, mas acredito que eles vão fazê-lo naturalmente”, remata Susanna Eastburn. “Brexit means Brexit”, mas resta torcer por uma aterragem o menos turbulenta possível.

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