Coimbra devoluta, ou a cidade como pele de leopardo

Derivas: Coimbra passa pelo centro de uma cidade desconhecida. Até domingo, o espectáculo-percurso da Circolando vai da Baixa à Alta para ocupar os espaços vazios.

Fotogaleria
JOÃO DUARTE
Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DANIELA CRUZ

Lugares abandonados, devolutos, degradados. As ilhas vazias de gente que se formam no meio da malha urbana quando as pessoas abandonam os sítios. A Circolando está em Coimbra para preencher esses espaços, ainda que provisoriamente, com Derivas: Coimbra, espectáculo-percurso que percorre as ruas da cidade até este domingo.

Não há uma pretensão de maquilhar os lugares com cenografia. Aqueles espaços – edifícios, salas, terrenos – são o que são desde o abandono, com vegetação selvagem, dejectos de pássaro, paredes de tinta gasta, teias de aranha, vidros partidos. E é isso que o público também verá nos sete pontos que vai percorrer entre a Baixa e Alta. “Crueza. Uma estética de simplicidade”, resume André Braga, que juntamente com Cláudia Figueiredo assume a direcção artística do espectáculo.

Uma urbe é interrompida e retomada à medida que cresce e se desenvolve. O director artístico recorre a uma metáfora do arquitecto italiano Francesco Careri, para quem a cidade é uma espécie de pele de leopardo, que vai criando manchas vazias enquanto se expande. Os espaços escolhidos reflectem essa ideia de vazio no meio da ocupação e o trajecto propõe transpor os muros que isolam o “espaço que não é público”.

“Há uma fase inicial de percorrer a cidade, de nos perdermos na cidade e andar à deriva, à procura de lugares inesperados." Aqui o espectador é chamado a assumir um papel de flâneur, embora mais atento do que ocioso. “Queremos que as pessoas façam uma viagem."

O circuito tem o seu primeiro ponto no Largo do Romal, na Baixa da cidade. Depois de divido em sete grupos, o público passa por sítios como a antiga loja Turíbio, um velho campo de futebol perto da Torre do Anto ou um andar devoluto num prédio do Pátio da Inquisição. O percurso acaba na Rua Velha, também na Baixa.

Lojas que já foram igrejas

Se a cidade é como uma pele, então também tem camadas. Derivas: Coimbra pega nessa ideia de história e de passagem do tempo de cada lugar. Estas camadas estão à vista, exemplifica André Braga, em lojas de automóveis que já foram igrejas. Cada passagem por um local é construída com elementos da sua história, através da recolha de depoimentos. Histórias que oscilam entre o bem e o mal, a verdade e a mentira, a Baixa e a Alta. O horário acrescenta uma dicotomia: começa de dia e acaba de noite.

É um espectáculo-percurso, à semelhança do que a Circolando tem vindo a fazer no Porto, com o ciclo Espírito do Lugar. Mas a Norte há uma diferença: a companhia trabalha na periferia e não no centro, como acontece em Coimbra. Por isso aqui o itinerário “não é tão perdido quanto isso”, rasga prédios e procura novos caminhos na cidade.

Desde que começou a sair das salas, “a procurar outros cenários, outros espaços, e a ir ao encontro das pessoas”, a companhia manifesta uma vontade de não se acomodar num lugar. O mesmo é aplicável às linguagens utilizadas: uma mistura de teatro, novo circo e artes performativas. A Circolando encontrou na aparente decadência da cidade o seu espaço. Ir ao encontro dos edifícios devolutos e das pessoas que os orbitam “também é uma questão política”, sublinha André Braga.

A selecção dos pontos de passagem de Derivas passou por esse encontro com habitantes, mas teve igualmente uma componente algo fortuita. “Foram dez dias a passear, a entrar em becos, a bater a portas”, conta.

O espectáculo, uma co-criação da Circolando com o Convento São Francisco, estreia esta quarta-feira e percorre as ruas de Coimbra até domingo, dia 18, com excepção de sábado. Derivas conta ainda com a participação especial do grupo Segue-me à Capela, do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra e de BØDE.

Sugerir correcção
Comentar