Cody ChesnuTT de volta à pureza

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Para ChesnuTT este disco é uma forma de restaurar a infância — e aquilo que então Marvin Gaye e Michael Jackson o fizeram sentir

Qual cometa, brilhou com "The Headphone Masterpiece" e logo se eclipsou. Agora regressa com uma soul tão clássica como este mantra: aceitar a vida, ser um homem decente. É hoje no Mexefest

Quando Cody ChesnuTT lançou o seu disco de estreia, The Headphone Masterpiece, já lá vão uns bons dez anos, era um homem radicalmente diferente do tipo ponderado que hoje atende o telefone na sua casa em Los Angeles, rodeado dos filhos e da esposa, para promover Landing On A Hundred, o seu segundo álbum - que hoje apresenta em Lisboa, no Vodafone Mexefest.

Na altura, ainda não sabia o que era o sucesso crítico nem uma conta bancária recheada. Tinha um emprego razoável a escrever canções para a Death Row Records, e foi assim que uma das suas composições chegou aos Roots. Estes gravaram The Seed e fizeram com que a canção escalasse as tabelas de vendas.

ChesnuTT incluiu-a em The Headphone Masterpiece, um estranho disco duplo repleto de temas proto-soul, sujos, lo-fi, avariados, por vezes incompletos. Se já fosse então um artista estabelecido e tivesse gravado o álbum num estúdio luxuoso, enchendo-o de arranjos, teria atingido a dimensão de uns Outkast; mas fez o disco em casa, com poucos meios (sintetizadores marados, baterias minimais, uma guitarra gingona), muita imaginação, tensão sexual e vibração: tornou-se um cometa.

Nessa fase, ler uma entrevista do homem era como assistir a uma locomotiva em direcção a um precipício: citação descabelada atrás de citação descabelada, ChesnuTT surgia como um homem em processo acelerado de combustão, sendo que se usava a si mesmo como combustível. E depois caiu num poço e lá ficou durante dez anos.

"Levei o meu tempo a crescer como pessoa, meu. Levei o meu tempo a crescer na minha fé", diz hoje ao telefone. O tempo faz isto às pessoas: Cody ChesnuTT, a quem há dez anos só faltou auto-proclamar-se como o Deus do sexo, é hoje um homem de família religioso, que fala pausadamente e pergunta, com toda a humildade, o que achámos de Landing On A Hundred (achámos muito bem), um disco que, ao contrário do seu antecessor, não dispara em todas as direcções, antes está centrado na soul mais clássica de Marvin Gaye e Curtis Mayfield.

Os dez anos em que esteve sem fazer discos não parecem preocupar Cody ChesnuTT. "Nunca parei para pensar que devia estar a fazer discos. Estava a experimentar algo muito mais colossal: ver os meus filhos a crescerem."

Há dez anos, diz agora ChesnuTT, ele era um homem perdido, incapaz de sossegar. Estava "a precisar de uma grande mudança na vida e estava pronto a aceitar a mudança". "Precisava disso para ser um homem de família", ouvimo-lo dizer - e ocorre-nos que a América só pode ser um país extraordinário, porque só num país extraordinário ainda há gente que se espanta com o extraordinário que existe dentro do ordinário (a luta que um tipo tem de travar para ser um sujeito fiável e, resumidamente, bom.)

ChesnuTT caiu num poço: "O poço da paternidade, meu. As coisas mais simples tocavam-me ao nível mais fundo e davam-me a volta à cabeça", diz, a voz falhando um pouco de cada vez que menciona a sua criação. "Todos os dias havia uma nova descoberta. Fosse um deles dar os primeiros passos, ou aprender uma palavra - porque surgia de lado nenhum. Um dia não conseguiam andar, no outro estavam em pé. Um dia só sabem duas palavras, no dia seguinte fazem uma frase completa."

É a história mais velha do mundo, mas a ênfase que ChesnuTT lhe põe indica que a sua fogueira não se apagou. Quando ele diz que "é quando tens filhos que percebes o que é importante neste mundo" quase parece não ter reparado que o resto da Humanidade sabe isto há muito, mesmo que não o proclame.

É muito possível que haja uma explicação racional para o espanto que a vida a crescer causa em ChesnuTT: "Eu sei a diferença entre crescer com pais e sem pais. São precisas duas pessoas para criar vida e devem ser duas pessoas a criá-la. E eu queria estar lá." E continua, acentuando o seu orgulho em ter estado "sempre presente quando os [seus] filhos deram os primeiros passos", acrescentando que "isso é uma coisa que ninguém [lhe] vai tirar".

Este é o momento em que as peças se juntam e começam a fazer sentido, não de forma óbvia e freudiana, mas de forma indirecta: Landing On A Hundred é o disco que é porque aquela foi a música com que ChesnuTT cresceu.

Aceitar a mudança

Cody ChesnuTT garante que nunca deixou de ir escrevendo canções, apenas não sentiu "o ímpeto de as transformar em disco": "Se me apetecesse escrever, escrevia; se não apetecesse não escrevia."

A soul, explica, é a música com que cresceu em miúdo, é o seu alicerce. "Os discos do Marvin Gaye e do Curtis Mayfield eram tão tocados na sala lá de casa que eles eram quase como membros da família. E isso internaliza-se. Pelo que esta música era o meio mais natural para eu comunicar."

É preciso introduzir aqui uma adenda: ChesnuTT não tem reclamações a apresentar em relação ao seu núcleo familiar mais directo, mas a história do tio mostrou-lhe como uma família pode ser destruída. Conta-o em Everybody's brother, uma das canções do novo disco, narrada de várias perspectivas diferentes. Uma delas é a de um viciado em crack: "Eu nunca fumei crack, mas o meu tio lutou com isso durante 15 ou 20 anos. Faz parte do meu círculo familiar. E faz parte da comunidade negra."

ChesnuTT teria "uns 18 anos quando o crack começou a aparecer". Na altura vivia em Atlanta, e a droga "devastou famílias inteiras": "Muitos dos passadores eram adolescentes, gente que eu conhecia. Consegues ver a destruição física que traz, e o materialismo, o dinheiro que se consegue daquele produto. Era inescapável. Eu sabia que não podia tocar naquilo. A luta do meu tio foi uma luta enorme."

Outra das personagens de Everybody's brother é um mulherengo. "Essa personagem sou eu", diz ChenuTT. A ideia da canção é "apresentar pessoas convencionais com problemas difíceis - pessoas que se libertaram dos seus problemas. É por isso que o refrão é No turning back."

O tema acaba por ser a peça central de Landing On A Hundred, e por sintetizar o seu mote: "É um disco sobre a mudança, sobre avançar. Sobre aceitar as mudanças que a vida traz. Julgo que todos lutamos muito contra isso e devíamos simplesmente aceitar."

O segundo álbum de Cody ChesnuTT é, obviamente, um disco de balanço, de repent - como só na América, o país que, ao contrário do que dizia Scott Fitzgerald, adora segundos actos, se pode fazer. E é por isso que é um disco soul: porque a soul era a música que ChesnuTT ouvia quando era puro. "Queria que este disco me fizesse sentir como os discos do Marvin Gaye e do Michael Jackson me faziam sentir quando eu era miúdo", diz-nos, antes de perder uns bons minutos a falar, comovido, sobre Jackson: "Ele era tudo para mim. A luz dele, a beleza da voz, as melodias. Se visses o Michahel Jackson mexer-se vias Deus a trabalhar no corpo de um homem especial. Que Deus tenha a sua alma."

Landing On A Hundred vai provavelmente afastar muitos fãs de ChesnuTT: não é um disco hip, é quase um disco reaccionário. Mas isso não o preocupa, porque ele sentiu um chamamento maior: "Senti que tinha de estar disposto a expor a vulnerabilidade emocional que esses discos tinham, e que eu próprio tinha e antes não era capaz de admitir."

Temos de escolher entre o ChesnuTT avariado, quase bulímico, que produziu um disco duplo inclassificável, e o ChesnuTT ponderado, que tem a noção do peso das suas opções e que preferiu o livre-arbítrio à liberdade? Ou podemos aceitar os dois, por mais contraditórios que sejam?

Valha-nos que o mundo tem capacidade para albergar a diferença.

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