Chegou o momento de sabermos quem é Eli Lotar

Andou dividido entre fotografia e cinema. Acabou por abraçar o cinema, mas não arrumou a fotografia. Foi um dos pioneiros do modernismo fotográfico. Ajudou a realizar A Severa e levou Lisboa na bagagem. A obra deste criador atormentado revela-se agora em Paris.

Fotogaleria
Para muitos dos que o acompanharam na cena artística parisiense, Eli Lotar foi um “talento precoce” Doação de Catherine Prévert 2016, Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Aux abattoirs de la Villete, 1929 Amsab-Institut d'Histoire Sociale, Gand, © Eli Lotar
Fotogaleria
Las Hurdes, 1933 Donativo de Anne-Marie e Jean-Pierre Marchand, Mitzura Arghezi e Théo Arghezi 1993, Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Locomotive, cerca de 1929 Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Sem título [vidro partido], entre 1940 e 1950 Donativo de Anne-Marie e Jean-Pierre Marchand, Mitzura Arghezi e Théo Arghezi 1993, Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Punition, 1929 Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Isolateur, cerca de 1930 Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Hôpital des Quinze-Vingts, 1928 Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Dormeuse, Espagne, quatrième voyage, Fevereiro de 1936 Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Aux abattoirs de la Villete, 1929 Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, © Eli Lotar
Fotogaleria
Aux abattoirs de la Villete, 1929 Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Benne (poussières), 1929 Cortesia Gilles Peyroulet et Cia, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Madrid, Fevereiro, 1936 Donativo de M. Jean-Pierre Marchand 2009, Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Sem título [Viagem a bordo do Exir Dallen] Donativo de M. Jean-Pierre Marchand 2009, Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar
Fotogaleria
Retrato da actriz Wanda Vangen, 1929 Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar

Um homem aprumado, de gabardina e chapéu, foge de um rebentamento que atira terra e pedras pelo ar. A superfície do terreno é plana e a sombra do homem projecta-se para fora do enquadramento. A silhueta escapa da imagem, estende-se, esguia, pelo chão (o Sol estava baixo, era madrugada ou ocaso), mas o homem, em primeiro plano, corre na nossa direcção, enquanto atrás dele, no espaço, se desenha um castelo de gravilha. É com uma enorme ampliação desta fotografia que somos recebidos na retrospectiva consagrada a Eli Lotar (1905-1969) no Jeu de Paume, exposição integrada no renovado Mois de la Photo du Grand Paris, festival que a partir deste ano, pela primeira vez, decorre em Abril e que alarga a sua programação a várias zonas da periferia da cidade.

Tanto o homem que corre, como esta explosão durante os trabalhos de drenagem nos terrenos de Zuiderzee, Holanda, em 1930, dão à imagem um estado de latência (uma instabilidade, uma potência, um desassossego), onde a acção parece nunca mais acabar. É uma fotografia de instantâneo, livre da rigidez formal e da composição certinha, que liga pouco com o que está do outro lado da parede, nas primeiras salas de exposição, onde se mostram os anos iniciais da actividade de Lotar, que logo que aprendeu a fotografar em Paris (ensinado pela sua primeira compagnon de route, a alemã Germaine Krull) começou por procurar a força e o artifício das linhas e o radicalismo das perspectivas, tornando-o, no final dos anos 1920, num dos primeiros modernistas a trabalhar na capital francesa.

A encruzilhada em que vivia a fotografia moderna na época (encravada entre um carácter científico e uma natureza artística), bem como a dificuldade de filiação numa corrente em particular (andou entre o surrealismo, o documentalismo e as correntes avant-garde de entre guerras), fizeram dela um corpo estranho, “perturbado” e “ambíguo” (Marta Gili). São condições que também descrevem não só o início de carreira de Lotar (sobretudo ligado ao modernismo, onde a cidade e a indústria são temas centrais), como todo o seu percurso, que abraça várias linguagens sem se fixar em nenhuma. E esta talvez seja uma das particularidades da sua obra que ajudam a explicar um esquecimento de décadas, uma dificuldade em arrumá-lo na história (da fotografia, do cinema) e em contar com ele como um dos responsáveis da emancipação da fotografia como suporte criativo e comunicativo de pleno direito. “A sua vocação de ‘produtor de imagens’ passa por várias fases de entusiasmo e de desencanto, talvez, entre outras razões, por causa da ambiguidade narrativa inerente a este suporte [fotografia] incapaz de satisfazer o seu desejo de descrever o mundo”, refere Marta Gili, directora do Jeu de Paume, no catálogo da exposição, que pode ser visitada até ao dia 28 de Maio e que também faz parte das comemorações dos 40 anos do Centro Pompidou, origem da maior parte das mais de cem provas vintage, que fazem desta a primeira retrospectiva de Eli Lotar com tiragens de época.

Foto
O mar foi um dos temas de eleição de Lotar. Doação de M. Jean-Pierre Marchand em 2009, Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar

Entre a fotografia e o cinema

Eliazar Lotar Teodorescu, fotógrafo e cineasta francês de origem romena, chegou a Paris vindo de Bucareste em 1924 e não demorou muito até entrar nos ciclos mais vanguardistas da cidade, primeiro pela mão de Krull (exilada alemã em França), depois pela dos surrealistas, com quem sempre foi privando (e criando) mas com quem nunca se filiou formalmente. Lotar publicou reportagens nas mais reputadas revistas ilustradas da época, entre as quais a Vu, Jazz, Documents e Arts e Metiers Graphiques, e participou em várias exposições internacionais de relevo ao lado de André Kertész e Man Ray, onde se contam a marcante “Film und Foto” (Estugarda, 1929).

Em paralelo aos seus primeiros passos na fotografia, Eli Lotar desenvolveu uma paixão pelo cinema e, em 1927, num contexto de crescente cinefilia, acompanhou algumas curtas-metragens do realizador holandês Joris Ivens, ex-companheiro de Krull, que o inicia nas técnicas de operador de câmara. Esta experiência revelar-se-ia fundamental, já que, a partir de então, não mais deixou de tentar deixar uma marca autoral no cinema, sobretudo documental. (Lotar: “No caso do documentário, o sujeito é a realidade, sem artifícios, e o problema consiste em transformar esta realidade noutra mais verdadeira ainda e que deve abanar a quietude do espectador.”)

Não se pode dizer que o esforço para erguer uma carreira no cinema tenha sido bem-sucedido (conseguiu algum reconhecimento apenas com Aubervilliers, de 1945, que chegou a ser selecionado para o festival de Cannes). E houve quem tivesse defendido (Germaine Krull) que, apesar de possuir um talento “inegável”, esta divisão de energia criativa entre fotografia e cinema acabou por comprometer a construção de uma obra mais consistente e duradoura ao serviço da primeira. "A sua carreira de fotógrafo é curta [1927-1935], a de cineasta deixa os especialistas famintos por saber mais [muito do seu trabalho no cinema perdeu-se], mas o esforço levado a cabo por Eli Lotar deve resumir-se à etiqueta ambivalente de 'diletantismo' que durante muito tempo se colou ao seu nome?", questiona Damarice Amao, co-comissária da exposição no Jeu de Paume (com Clément Chéroux e Pia Viewing), assistente de conservação no Pompidou e responsável por uma recente tese de doutoramento sobre Lotar, que significou um importante avanço historiográfico sobre a sua obra e sobre a sua rede de influências no efervescente meio artístico modernista parisiense, que o colocam no centro dos acontecimentos. Mas também há quem pense, como Marta Gili, que foi através do cinema que Lotar chegou àquilo que tanto procurou, a “fotogenia da imagem”: “Escondendo-se atrás da sua paixão pelo cinema, encontra aqui finalmente a ligação narrativa que correspondia as suas inquietudes e ao seu compromisso social. Passando da fotografia para o cinema, da imagem fixa à de movimento, incute ‘mobilidade’ aos seus clichés inspirados na corrente da Nova Visão, fomentando as qualidades prestidigitadoras da câmara.”

Foto
Um busto de Lotar, na última escultura de um homem feita por Alberto Giacometti, em 1965 Doação de Anne-Marie e Jean-Pierre Marchand 1993, Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar

Figura atormentada e povoada por “demónios interiores”, Eli Lotar recusou sempre dar grandes detalhes sobre o seu percurso pessoal e profissional. Os últimos anos em Paris foram particularmente difíceis, entre a doença, a errância e a indigência. Depois da sua morte, os amigos que lhe eram mais próximos também se abstiveram de fornecer pistas para melhor compreender o seu percurso quer na fotografia quer no cinema. Sabe-se, no entanto, que na década de 1960, foi-se tornando visita assídua do estúdio de Alberto Giacometti, de quem era amigo há décadas. Essa convivência foi pautada por uma troca de olhares (e de saberes), tendo-se materializado num regresso de Lotar à fotografia (captou intensamente o escultor, o seu estúdio e a sua arte) e em várias esculturas de Giacometti (Lotar foi a última escultura de um homem saída das mãos do mestre suíço).

À procura da “fotogenia dos lugares”

É precisamente com uma escultura de Eli Lotar – naquela amálgama expressionista de Giacometti, bocado aqui, bocado ali que dá forma a um todo – que termina a exposição. Para além de nos revelar um talento precoce até agora pouco conhecido (e pouco estudado), os méritos da retrospectiva no Jeu de Paume passam por colar pequenas peças de uma obra singular e diversificada que nos dão uma boa panorâmica da estética de Lotar, da sua flânerie urbana, do seu enamoramento pelo documentário (no cinema, na fotografia), as suas viagens ao Mediterrâneo (e a paixão pela arte e mitologia gregas), bem como as suas aventuras pelo mundo do espectáculo parisiense (music-hall incluído).

Foto
Em 1931, Lotar andou por Lisboa e registou imagens que estão para lá do modernismo tecnicista, então muito em voga Doação de M. Jean-Pierre Marchand em 2009, Colecção Centro Pompidou, Paris, © Eli Lotar

As duas primeiras partes da exposição (Nova Visão e Deambulações Urbanas) mostram provas de época de pendor modernista (picados, contra-picados, desenquadramentos, planos muito fechados ou muito abertos…) e concentram-se nas reportagens fotográficas que Lotar publicou em abundância na imprensa ilustrada. Através destas narrativas visuais é possível perceber a notoriedade que Lotar alcançou no meio avant-garde, sobretudo aquele ligado à fotografia feita a pensar na página impressa (as reproduções ou os originais de revistas têm um lugar de destaque em todo o percurso expositivo). Na nova visão que tentava “descobrir no objecto conhecido o objecto desconhecido” (Pierre Bost), a fotografia era um instrumento de “revelação do mundo”, uma realidade frenética da qual faziam novas máquinas (aviões, barcos, carros, comboios) e na qual os sinais publicitários ganhavam terreno no espaço urbano. Como aquela mão gigante a sair de um prédio de Lisboa, que segura uma lâmpada a anunciar “Eletrigia”, que mais não é do que uma loja de iluminação na Baixa da cidade, por onde Lotar andou em 1931, quando veio a Portugal ajudar à realização de A Severa, o primeiro filme sonoro português. Para além desta, há outra fotografia de Lisboa na exposição, onde duas crianças sobem uma longa escadaria (em Alfama?).

Nas deambulações pela cidade, entre onirismo e realismo, Lotar vai-se libertando da estética modernista e começa a responder a solicitações editoriais mais narrativas, como aquela que o escritor Georges Bataille lhe dirigiu em 1929, uma reportagem sobre os matadouros de La Villete. Deste trabalho sairia uma das suas imagens mais conhecidas, a que mostra uma série de pés de vaca alinhados contra uma parede do matadouro, que Bataille escolheria para ilustrar a palavra “matadouro” num ensaio na revista Documents, e que durante décadas permaneceu como ícone solitário do seu vasto trabalho, fazendo o papel da árvore que esconde a floresta (Chéroux).

Foto
A cobertura dos trabalhos de construção no golfo de Zuiderzee marca a colaboração com o realizador Joris Ivens Arquivos Tériade, Museu Regional Matisse, Le Cateau-Cambrésis © Eli Lotar

O envolvimento com o documental (terceira parte da exposição) ganha mais força quando viaja para a Holanda com Joris Ivens para a realizar Zuiderzeewerken (1930), sobre a construção de barragens, diques e comportas na geografia complexa do Golfo de Zuiderzee. É a partir desta altura começa a publicar fotografias registadas durante a captação dos filmes em que participa e a escrever sobre as condições sociais dos trabalhadores, sinal de que o seu posicionamento político também se torna mais vincado. Esse compromisso revela-se ainda mais quando se envolve na rodagem de Las Hurdes: Terra sem Pão (1933), o único documentário do espanhol Luis Buñuel, realizado para denunciar o quotidiano de miséria em que viviam os habitantes da região de Las Hurdes, Espanha. A partir de meados dos anos 1930 e até ao fim da vida, Lotar dedica-se quase em exclusivo ao cinema, quer em projectos com outros cineastas (foi, entre outros, operador de câmara de Jean Renoir), quer em trabalhos próprios ou encomendas. Muitos dos seus filmes perderam-se, outros não saíram do papel.

Nas inúmeras viagens que fez durante as décadas de 1920 e 1930 (entre as quais uma volta ao mundo de barco), a paisagem marítima e portuária bem como o bulício humano a ela associado tornaram-se uma presença constante na sua obra fotográfica (à procura da Fotogenia dos Lugares, quarta parte da exposição). Da Grécia, aonde regressa várias vezes, traz vistas do mundo contemporâneo e sinais de uma cultura antiga, juntando a vitalidade das reportagens na malha urbana com a “simplicidade refinada” das estátuas de arte cicládica. Estas imagens serão publicadas em vários livros a revistas mais voltadas para os viajantes, com textos de autores tão prestigiados quanto Le Corbusier ou Marguerite Yourcenar.  

O regresso às suas várias famílias artísticas e às redes intelectuais que frequentou faz-se na última parte da exposição (que não tem um percurso cronológico rígido), onde o retrato (que praticou em abundância) procura quase sempre a pose ou a postura, a teatralização do momento. É no mundo do teatro, aliás, com Antonin Artaud e Roger Vitrac, que Eli Lotar experimenta, em 1930, as suas criações mais originais, surrealistas e transgressivas, como as fotomontagens (em jeito de quadros vivos) para um manifesto-brochura do Teatro Alfred Jarry, que procurava a mais pura provocação.

Depois da morte de Giacometti, em 1966, Lotar quis fazer uma exposição com as imagens que foi captando do escultor ao longo dos anos em que lhe serviu de modelo, anos em que cultivaram uma profunda amizade. Mas o seu próprio estado de cansaço e doença inviabilizaram esse desejo (morreria dois anos depois). Mesmo a fechar a restrospectiva no Jeu de Paume, uma prova de contacto com 34 fotogramas mostra desenhos de esquissos e as várias fases por que passou um busto do fotógrafo nas mãos do escultor, “uma conversa profunda e silenciosa” que deixa antever como seria essa exposição. É um compósito que tem tanto de desconcertante como de revelador das inúmeras facetas, das muitas vidas de Eli Lotar.

Sugerir correcção
Comentar