“Cerimônias” e exames

Há dias convidaram-me para uma “cerimônia”. Não fui. Não pelo convite, ou por inconveniências temporais, mas pela incongruência da expressão. A dita “cerimônia” não se realizava no Rio, São Paulo ou qualquer outra cidade brasileira, mas em Lisboa e o convite partiu de um português. Que se passará para termos agora “cerimônias” em vez de cerimónias? Ignorância? Dicionário errado?

Seja o que for, o mesmo problema pode também afectar Nelson. Nelson é, suponhamos, um aluno instruído no Rio de Janeiro que, por migração dos pais, se mudou para Lisboa e ali prosseguiu os estudos. Num teste escolar, teve pela frente um texto livre dedicado aos transportes. Nelson não teria problemas, escrevia bem, pelo menos era o que lhe diziam no Rio, e atirou-se à escrita. Mas o professor veio depois admoestá-lo, baixando-lhe a nota, por “vários” erros ortográficos. Escreveu Nelson, seguro de si, as palavras “trem”, “cotidiano”, “recepção”, “excepcional”, “concepção”, “aspecto” e “quatorze”. O professor emendou “trem” para “comboio” (“essa palavra não se usa por cá com esse sentido, só no Brasil”), “cotidiano” (palavra que é admitida pelo Dicionário Houaiss) para “quotidiano”, “recepção” para “receção”, “excepcional” para “excecional”, “concepção” para “conceção”, “aspecto” para “aspeto” e “quatorze” (como no Brasil se escreve, regularmente, há décadas) para “catorze”. Nelson estava estupefacto (ou estaria “estupefato”?): então não havia, agora, uma ortografia comum, em que 99% das palavras eram grafadas da mesma maneira em todas as pátrias de língua portuguesa?

Pobre Nelson: calhou-lhe uma “cerimônia” desconcertante. E a esta não se chama erro, chama-se fraude. Apesar da proliferação dessa coisa a que chamam “acordo”, continua a haver grafias diferentes em Portugal e no Brasil. E não apenas pelo uso de milhares de vocábulos distintos. As razões para isto são do conhecimento geral e só os senhores que, com voluntárias palas nos olhos, assinaram uma coisa a que chamam “acordo” insistem em ignorá-las.

É curioso que, em 1952, tinha o Brasil acabado de rejeitar o “acordo ortográfico” de 1945, o então presidente da Sociedade de Língua Portuguesa, Raul Machado, escrevia no boletim da dita um texto contemporizador, admitindo que pudesse vir a escrever-se em Portugal “fato” em lugar de “facto”, isto para ter a aceitação do Brasil. “Que mal há em que se escreva àção em vez de acção? Que bem há em grafar abstracto em vez de abstrato?” Deixando de parte concordâncias ou discordâncias com tais sugestões, é curioso ver que ele escolheu palavras onde as alterações não prejudicariam a fonética. Escreveu “àção” por “acção” (substituindo o “c” na sua função de impedir o fechamento do “a” por um acento grave). Sucede que, no novo “acordo”, caiu o “c” mas não ficou nada. O que, se funciona para o Brasil, não funciona para Portugal, que se vê impelido a ler “ação” da mesma forma que lê “a São”.

Corresponde isto, como se propagandeou, a uma reforma em benefício da fonética? Só com uma grande dose de descaramento é possível defender tal tese. Se os sinais diacríticos servem para “distinguir a modulação das vogais e a pronúncia de certas palavras” (como diz o Dicionário da Porto Editora) ou “para diferençar letras ou palavras” (como se escreve no Priberam online), a sua supressão influi necessariamente na fala. Acentos ou consoantes com tal função são fulcrais para que se leia “cerimónia” ou “cerimônia”, consoante se siga as normas portuguesa ou brasileira (sim, que ainda existem, apesar das falsidades em contrário), “bebé” ou “bebê”, mas também corréção em “correcção” e não a corr’ção induzida pela nova fórmula “correção”. E isto é  porque estamos em Portugal, com normas fonéticas próprias, diferentes das do Brasil — Brasil que, para uma mesma língua, a portuguesa, tem há séculos uma “fala” própria que briosamente lapidou. Nesse mesmo Portugal onde não devia haver portugueses a convocar “cerimônias” nem alunos a serem penalizados por regras que nem os seus mentores explicam com um mínimo de nexo.

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