Cenas da vida diplomática

Com este volume, completa-se por agora uma obra diarística de quatro décadas

Não há muitos diários portugueses tão persistentes como o de Marcello Duarte Mathias, no conjunto a que chamou "No Devagar Depressa dos Tempos" e que reúne textos que vão de 1962 a 2003. A constância contrasta com a história da publicação desses quatro volumes, que foram aparecendo, sem ordem cronológica, entre 1980 e 2010.

"Os Dias e os Anos", o segundo volume, abrange o período de 1970 a 1993. É uma obra paradoxal face ao "Diário da Índia" e ao "Diário de Paris", que cobriam a década 1993-2003. Enquanto estes tinham um estilo tranquilo e maduro, embora acontecesse pouca coisa, o volume agora editado corresponde aos "tempos interessantes" (como na maldição chinesa), mas tem passagens mais esboçadas e inconclusivas. Talvez porque o diário comece por ser uma espécie de cenas da vida diplomática, e portanto assuma uma dimensão de memorial, um pouco hermética para quem não conhece as figuras retratadas. Filho e irmão de diplomatas, Mathias fala da "Casa" (o Ministério dos Negócios Estrangeiros) com familiaridade e pertença, embora tenha noção das ficções e coreografias, e recorra muitas vezes à descrição grotesca das personagens que encontra, autoritários efeminados, pinguins engravatados e demais bobos.

As funções diplomáticas, primeiro em Brasília e depois em Bruxelas, obrigam Mathias acompanhar com atenção os acontecimentos internacionais dos anos 70 a 93, incluindo as brigadas vermelhas, a revolução iraniana ou a queda do bloco soviético; mas o que domina estas páginas é naturalmente a mudança de regime em Portugal e o processo de integração europeia.

Mathias, conservador contido, considera que o Estado Novo tinha os defeitos de Salazar e nenhuma das suas qualidades, e que já estava exangue em 1974. Reconhece-se em geral no pensamento de Franco Nogueira, incluindo a decadência acelerada da situação e a necessidade de uma solução colonial digna. Mas Salazar morre em 1970, Tomás é medíocre, Marcelo indeciso, a revolução é inevitável. Aí, Marcello Mathias põe talvez alguma esperança, inevitavelmente traída, no oitocentista Spínola, marechal de opereta, e teme os desmandos do paranóico companheiro Vasco. O processo revolucionário é para o autor uma profunda decepção, prova de uma doença congénita num país incurável. As páginas em que cita Oliveira Martins, que "antecipa" minuciosamente o PREC, são estarrecedoras. Depois vem a normalidade democrática. Mathias simpatiza com Adelino Amaro da Costa, frenético, e às vezes com Soares, monarca indolente. Quanto à Europa, é praticamente um eurocéptico, daqueles que opõem sempre a "civilização europeia" à "união europeia", e preferem Montaigne ao directório franco-alemão.

Embora quase sempre desiludido e algo distante, Marcello Mathias vai-nos dando retratos das figuras que conhece nas suas andanças diplomáticas ou literatas. Encontramos por exemplo um Savimbi "Orson Welles da selva", o cabotino Bernard-Henri Lévy, um Vergílio azedo, Ruben A. civilizadíssimo, Alçada meloso, Cinatti "clochard". Há muitos obituários e notas de almoços e jantares, porque este é também uma espécie de diário do Estoril (onde o autor tem casa). Quando se refere a figuras com quem não privou, Mathias é com frequência injusto, despachando Sartre com uma simples graçola, e dizendo que Aquilino é ilegível. Mas são justíssimas as caracterizações do grande pavão Giscard ou de um certo abastardamento nacional que Mathias comenta com deliciosos tiques de snobismo. É um diário vaidoso, mas nunca arrogante. Mathias sente-se excluído da vida literária, fuzila a "pandilha" que domina as nossas letras, mas, tendo em conta que vai escrevendo artigos para o JL, a queixa parece excessiva.

A pulsão aforística é em geral pouco convincente; em contrapartida, Mathias está nas suas sete quintas a descrever um quadro de Delvaux, uma praia em Copacabana ou a túrgida Moscovo da "perestroika". E uma página sobre Biarritz, excelente, ameaça tornar-se um excerto proustiano, uma ficção elegante e melancólica, tal como o próprio Mathias.

Sugerir correcção
Comentar