Campanário

As casas na Madeira ficam de montes às costas. Metidas nas arribas como funambulas, são lugares miradouros onde custa crer que a gente se descanse. Todos me dizem que é normal ser assim, sempre foi, são séculos de arquitectura e, sobretudo, de engenharia de altitudes, mas a mim não me tiram a impressão de que, nas encostas altas do Campanário, as montanhas pesam sobre as construções como se as quisessem descer ao mar.

Durmo um olho de cada vez para ficar de vigia. Estou desconfiado disto tudo. São as casas como aqueles ninhos de pássaro em postes. Parecem para gente de voar e eu sei bem que não voo, tenho vertigens e medo abundante, tenho imaginação e ansiedades.

As pessoas dizem-me que são proprietárias deste ou daquele terreno e que pensam construir ali e que adoram. Eu fico a achar que um terreno a pique é um paredão e que construção vertical é escada. Subimos e descemos até sentirmos os músculos todos das pernas em exercício. Viver aqui é a prática de um atletismo de alta competição. Vemos uns e outros em caminhos e degraus, a chegar à capelinha de Nossa Senhora do Bom Despacho com menos falta de ar do que eu. A dona Luísa Reis ainda se encavalitou no muro, pela terra fora, para apanhar figos. Claro, comigo a protestar. Não sei o que dá às pessoas mais velhas daqui, nestas ganas de andar a subir e a descer, mas não ficam quietas.

A capelinha estava enfeitada de açucenas para o dia da sua festa anual, havia uma missa. No fim da missa, ao lado, o arraial animou com música pimba. Veio mil vezes mais gente à música do que à missa, mas na capelinha é que as vistas se tornavam uma maravilha, além de o perfume das flores se pôr como inebriante. Pude apreciar o mar quieto da ilha. Chegava muito cordeiro à terra da freguesia. Vemo-lo extensíssimo e levantado porque nós estamos levantados. Marcamos o horizonte para longe. O mar é um tecido azul, longo linho azul que as rochas no pé da ilha vão bordar.

Ando à procura de um menino da lapinha mas já só vendem uns modernaços com olhos arregalados como se fumassem drogas. Quero um a parecer a sério. Olhos calmos e doces. Dizem-me que agora só chegam destes. Os bons já não são de hoje. Mandam-me às velharias, às antiguidades. Desconfio que estou a desenvolver um desajuste grave com o meu tempo porque cada vez mais gente me manda às velharias e às antiguidades. Uma senhora, na loja mostrando-me o pequeno Jesus, dizia que estas chinesices pareciam demoníacas. Uns santos demoníacos, sem respeito nenhum. Por isso, os presépios madeirenses andam a ficar esquisitos. Os chineses fazem um Cristo com o mesmo amor com que fazem a Popota. A mulher disse, com o ar enjoado.

O presépio madeirense é muito único. Com o menino de pé ao cimo de uma certa pirâmide, colocam-se frutas nos degraus aludindo à frescura e à abundância. São oferendas. O menino veste linho bordado cuidadosamente pelas mulheres. Um luxo delicado e discreto. A figura é tão vulnerável e bela que vivem as comunidades em susto com os assaltos para furto destas peças. Tantas vezes fundamentais nas heranças de toda a gente, estes meninos desaparecem por todo o lado. Algumas pessoas colocam nas cómodas uns recentes e arregalados, escondendo os originais em armários fechados. É estranho pensar que a fé vai de original a cópia.

No Campanário, como em quase toda a ilha, as encostas olham umas para as outras como ruas dobradas a meio. Páginas de um mesmo livro que se aproximam mas não se fecham. A percepção da vizinhança é absoluta. Passamos como visíveis. Intensamente visíveis, quero dizer. Numa e noutra montanha, somos um bulício apelativo. As pessoas assomam à janela para nos inspeccionar. Fazem cálculos para saberem quem somos. Como uma página do livro encara a outra, a população vive de nariz virado para a vizinhança. É um modo de segurança. Toda a gente se conhece. A dona Luísa Reis vai na rua e cumprimenta cada alminha e tem pergunta ou resposta para cada alminha porque a freguesia é uma família grande. Fica-se a saber de quem está gordo ou magro, quem já emigrou ou quem voltou, sabe-se das promessas de casamento e das obras nas levadas ou no arranjo dos poços de furnas que são essenciais ao cultivo e aos animais de toda a gente.

Fica-se a saber que eu, certamente, volto tarda nada.     

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