Britney passou dois anos em Las Vegas e ganhou a aposta

Las Vegas não atirou Britney Spears para um poço sem fundo. Em vez disso, a cantora regressa com Glory à sua melhor consistência e assina um punhado de grandes canções.

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Britney Spears a actuar em Maio passado nos Billboard Awards em Las Vegas REUTERS/Mario Anzuoni/File Photo
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A imagem da capa do novo disco
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A imagem do single Make Me

Em Las Vegas, tudo se resume a sorte ou azar. Ou pelo menos é nisso que gostamos de acreditar e que nos é vendido como verdade inquebrantável. Em Las Vegas, nunca se sai como se entra. O que pode ser um sério problema quando a combinação entre jogo, prostituição e gangsterismo anda por ali à solta sem freio nos dentes e constitui, afinal, o chamariz de risco e ócio desbragado que se tornou a imagem da mais afamada cidade do estado do Nevada. A partir dos anos 1970, com as residências artísticas de Elvis Presley, também o entretenimento carregado de excessos – feito de um histrionismo de quem não pode apostar fraco numa terra em que as aparências contam e a pose de ter o mundo aos pés é moeda corrente e aceite – faz parte do apelo e pode levar a perdas ciclópicas.

Las Vegas tornou-se também sinónimo do declínio de Elvis, com uma rápida decadência documentada no constante redesenho do seu emblemático fato branco de franjas, alargado cada vez que era preciso acomodar mais uns quilos de um torso em claro projecto expansionista. Para Elvis, Las Vegas foi a porta aberta para o descontrolo e para uma vida sem limites que começou cada vez mais a assemelhar-se à morte. E sem limites, porque esses eram antes garantidos pela robusta máquina de Hollywood, demasiado necessitada do seu poster boy para lhe permitir o consumo desregrado de álcool e outras substâncias auto-medicadas. Ali, rodeado de todo o tipo de tentações e com os bolsos cheios, a exuberância tinha a forma de um buraco fundo e a peregrinação para ver Elvis em palco tornou-se, progressivamente, o testemunho de um epílogo mórbido.

Se Las Vegas foi a queda para Elvis, a ideia de residências na cidade-casino passou a ter essa aura de maldição sobre qualquer cantor. Passar meses a animar os palcos de uma terra de perdição parecia uma provocação que, no limite, implicaria a própria perdição. Claro que casos como o de Céline Dion e o seu espectáculo Muse, em 2002, poucos cuidados inspirariam quanto a um possível colapso artístico. Muse não chegou a existir com este título porque a banda britânica de Matt Bellamy atiçou os advogados contra a cantora canadiana, argumentando que o público poderia ser levado ao engano e julgar que o trio rock-teoria-da-conspiração seria a banda que estaria em palco a acompanhar temas como My heart will go on. Mas Las Vegas parecia ter igualmente o condão de transformar qualquer um numa caricatura de si próprio – ou se tinha o arcaboiço folião de Tom Jones para a confusão ser constante ou a jogada podia sair cara.

Quando chegou a vez de Britney Spears, e do espectáculo Piece of Me, estreado a 27 de Dezembro de 2013, era quase impossível não encarar Las Vegas como uma fuga. Desde logo, porque o seu contrato de 100 actuações espalhadas ao longo de dois anos no Planet Hollywood Resort & Casino matava de imediato uma possível intenção de promover consistentemente o álbum Britney Jean, lançado três semanas antes da estreia de Piece of Me. E não espantaria se Britney estivesse, afinal, em fuga desse álbum, atirado para as ruas como se terminado à pressa, todos os sintomas apontando para um diagnóstico de prematuro, apresentado com um alinhamento desastroso, todo o álbum sugerindo que Work Bitch, tema do produtor executivo will.i.am, devia estar na primeira linha e a partir daí todo o desmazelo era admissível.

Se é prática corrente e conhecida que nos discos das grandes figuras da pop norte-americana o desfile de autores e produtores é uma constante, Britney Jean soava a uma manta de retalhos desnorteada, sem ideia clara do que queria ser – e cujo contraste com o anterior Femme Fatale, provavelmente o melhor e mais equilibrado álbum de Britney, se tornava verdadeiramente penoso.

Composto por um reportório best of, Piece of Me fazia acreditar que Britney estava, de facto, a desistir do presente (o álbum que tinha acabado de lançar), preferindo refugiar-se no passado. Fazendo-o em Las Vegas, parecia estar em marcha – tendo em conta o seu percurso algo errático – um guião milimetricamente escrito até ao descalabro.

O que não mata…

Em vez de repetir actuações como a dos prémios MTV, em 2007, quando surgiu em palco titubeante, sem agilidade para acompanhar a coreografia e a meio de um período em que tresandava a mais uma estrela pop prestes a descarrilar com estrondo –, a desconfiança inicial da sua aposta em Las Vegas deu lugar a repetidos elogios a Piece of Me. O espectáculo tornou-se um tal sucesso que a residência prolongou a sua vigência por mais dois anos, até 2017.

Glory, o nono álbum de Britney Spears, foi construído graças a – e não apesar de – Piece of Me. Não tomando grandes riscos, retrocede até à coerência de Femme Fatale (2011), ainda que sem o apuro e a mais evidente fisicalidade desse registo. Arranca, aliás, com um dos temas menos pomposos da sua discografia, uma imaculada canção a raiar o etéreo, a lembrar as Haim de Days Are Gone, em que a voz parece não ser mais do que um sopro. Se Invitation assim é, Make me… não vira o tabuleiro ao contrário, segue numa toada baladeira de r&b e não cede a guinadas inesperadas. Glory marca várias vezes pontos nestes temas em que Britney não se coloca na posição de sedutora em brasas de outrora – Man on the moon é exemplar nessa recusa –, mesmo que os caminhos mais libidinosos do álbum tenham a sua quota preenchida na perfeição por Do you wanna come over?, libelo anti-solidão que só por um azar da vida não saiu da dupla Pharrell Williams / Chad Hugo nos tempos dos N.E.R.D.

Por gozo e provocação, dir-se-ia, Britney Spears parece entregar-se amiúde a jogar um jogo que não é seu, fazendo de Private show uma mixórdia de Rihanna e Gwen Stefani, convocando os prolongados namoros de Stefani com o reggae o dancehall (mas em que a marca d’água jamaicana é coisa inofensiva, totalmente controlada pelo instinto pop), brincando um pouco à soul vitaminada patenteada por Christina Aguilera em What you need.

What you need, Do you wanna come over? e a deliciosa e escancaradamente pop Hard to forget ya são prova suficiente de que Las Vegas não matou nem domou Britney Spears. Não fosse um par de passos em falso, as vulgares Just luv me e Just like me, e a despedida com a tirada “that was fun” teria o dobro do sabor.

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