Benjamin Clementine é a voz aristocrática que veio da rua

Parece apenas mais uma história de um cantor descoberto a cantar nos corredores do metro. Neste caso, um inglês em Paris. Bem, e até certo ponto é. Mas depois de se ouvir o álbum de estreia de Benjamin Clementine percebe-se que é mais do que isso.

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Foi o ano passado, era ainda Benjamin Clementine um total desconhecido, com apenas um single no mercado. Fazia a sua estreia na TV inglesa, no programa de música da BBC2 de Jools Holland, olhos cerrados, pés descalços, sentado ao piano, cantando com voz potente, para gáudio dos espectadores.

“I am lonely, alone in a box of stone/They claim they loved me but they all lying / I am lonely alone in a box of my own / And this is the place, I now belong”, cantava ele em Cornerstone, por entre as cascatas das notas do piano e as respirações ofegantes, procurando pausas para de imediato lançar um grito catártico, acabando a repetir “Its my home, home, home, home”, antes de se fazer silêncio e as palmas irromperem.   

 Depois da pequena actuação, emocionado, reservado, quis recolher-se de imediato aos bastidores, mas nos corredores alguém lhe puxou pelo braço. Queria expressar-lhe a comoção que sentira ao vê-lo e disse-lhe que tinha imperiosamente de continuar a sua carreira. Paul McCartney, que era também convidado do programa, tinha razões para tal entusiasmo.

O cantor-compositor Benjamin Clementine, 25 anos, é peculiar. Especialmente ao vivo: impressiona pela presença magnetizante, pelo lirismo vocal grandioso, pela música híbrida, com qualquer coisa de clássica, jazz, gospel ou canção ligeira francesa. Nos dois últimos anos foi recolhendo elogios em França, e também em Inglaterra, mas agora com o lançamento do álbum de estreia At Least For Now a sua base de admiradores promete alargar-se pela Europa.

A voz é majestosa, sublimando letras autobiográficas que falam da solidão, e a música é intemporal. Não respira o ar dos tempos. Cria o seu tempo. É possível nomear influências (David Bowie, Tom Waits, Nick Cave, Scott Walker, Nina Simone, Jacques Brel ou Charles Aznavour), mas é pouco crível que a partir delas seja mais fácil de situá-lo.

É inglês, filho de pais ganeses, mas foi quando se mudou para Paris há seis anos que começou a dar nas vistas, tocando nos locais mais inusitados – corredores do metro, pequenos bares, festas de casamentos ou bares de hotéis de má fama.

O alienígena

É inglês, nasceu nos subúrbios do Norte de Londres, filho de pais que se divorciaram quando ele tinha 13 anos. É o mais novo de cinco irmãos. Hoje quase não mantém contacto com eles, pais e irmãos – a excepção é o irmão mais velho –, tendo entrado em ruptura com a família por razões nunca explicitadas, embora se perceba o isolamento a que se foi submetendo.

Foi construindo o seu mundo. Não jogava à bola na rua com os outros da sua idade e em vez das aulas perdia-se na biblioteca, lendo de Kant ou William Blake. No meio viril do rap onde cresceu era incompreendido. Era o alienígena.  

“Cresci no meio de uma grande solidão”, diz. Não tinha amigos. Não falava com ninguém. Nunca ia ao café. Mesmo com os irmãos havia pouca comunicação. Quando olha para trás admite que foi o mais difícil da família. De alguma forma, a música salvou-o. A primeira vez que experimentou algo parecido com o sentimento de pertença foi quando ouviu Gymnopédies de Erik Satie na rádio. Foi uma revelação: havia algures outras pessoas capazes de expressar, sem palavras, o mesmo tipo de emoções que ele queria expor. A música confortava-o. “Tínhamos um piano em casa onde era proibido tocar, mas lá acabei por conseguir reproduzir essas notas de Satie”, conta.

Há seis anos resolveu mesmo abandonar Londres e mudar-se para Paris. Não tinha contactos em França, não dominava a língua, dormiu ao relento, em hotéis precários, em cozinhas de restaurantes onde trabalhou ou em casa de namoradas que mal conheceu. Uma vida vagabunda que prefere não romantizar.

Em casa dos pais, novo, havia começado a tocar viola e piano, mas nada de mais. Nunca teve treino formal com qualquer instrumento mas aos 15 anos, depois de ouvir Satie e de ver Antony tocar canções do seu álbum de estreia na TV, imaginou que poderia vir a fazer o mesmo. E assim aconteceu.

Em França começou a tocar no metro (existem inúmeros vídeos de telemóvel no YouTube, registando-o), ao mesmo tempo que foi tomando contacto com a realidade musical gaulesa, continuando a ouvir Satie, mas também Léo Ferré, Edith Piaf ou Jacques Brel. O seu carisma, a presença imponente, o vozeirão e as canções que interpretava (Cohen, Dylan ou Hendrix) acabaram por chamar a atenção de um amigo de Matthieu Gazier, que mantém uma editora independente e que se tornou seu manager, acabando por lhe possibilitar a gravação do EP de estreia Cornerstone.  

Hoje tem algum pudor em falar desses tempos em que a rua era a sua morada. Faz sentido. Receia que a curiosidade pela sua biografia acabe por suplantar o interesse pela música. “As pessoas querem que lhes seja contada uma bela história”, dizia ao The Guardian, consciente dos perigos da efabulação.  

Quem já privou com ele vislumbra uma figura tímida que sussurra mais do que fala. É o tipo de cantor que se metamorfoseia em palco, acabando por transcender-se, de alguma forma expondo uma contradição: é reservado, mas nas suas letras expõe as suas experiências privadas – desilusões amorosas, errâncias solitárias ou omissões familiares. “Não creio que seja um cantor, acho que sou um expressionista”, diz, querendo com isso dizer que canta apenas do que sabe.

É muitas vezes comparado a Nina Simone, embora diga que apenas a descobriu recentemente. “Na verdade não oiço muito jazz ou soul”, afirmava o ano passado ao Le Monde, dizendo que quase não ouve música recente, com excepção de James Blake. Diz que a descoberta de Brel ou de Ferré foi mais determinante. “Passei muito tempo à procura de documentos deles no YouTube e fiquei maravilhado pela forma como se deixam submergir pelas canções. Acho que essa intensidade, como em mim, deve-se ao facto de serem canções autênticas que não permitem a falsidade interpretativa.”

Em Cornerstone, a sua primeira e mais emblemática canção, expele todas as frustrações e ressentimentos, com uma força brutal que fascina, mas em Adios discorre sobre a saída de Londres, assumindo as escolhas, sem culpar a família, amigos ou contexto social. “Tendemos a arranjar desculpas, o que acaba por constituir um sintoma de fraqueza. Difícil é adoptar as nossas escolhas sem quaisquer justificações”, reflecte.  

Ao piano, ou quando canta, tem gestualidade teatral, impondo tensão dramática e o exacerbamento das emoções, embora diga que se limita a ser ele próprio. Quando lhe perguntam porque opta por cantar descalço limita-se a dizer que é dessa forma que o faz em casa, como se quisesse que o piano fosse uma extensão de si próprio.

Em cena quer sentir-se o mais possível em casa. “Esse contacto directo deixa-me mais livre para exprimir a minha personalidade, sem afectações”, declarou recentemente à revista Les Inrockuptibles, assumindo que não quer ser visto como uma personagem. Alega que quer ser ele de corpo inteiro, argumentando que se pudesse, para o explicitar de forma inequívoca, entraria desnudado em palco, mas as canções chegam para nos devolverem Clementine, a nu.

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