Babilónia

1. Nunca tinha trepado as traseiras do Leme. Anos de Rio de Janeiro e tanto por começar, tomara o amor em geral. O Leme é aquele bairro que é uma ponta de Copacabana, o desfecho da baía de Copa antes do morro que esconde, do outro lado, a baía de Botafogo. Não muito a minha praia, mais um toca-e-foge, quando era o caso. Clarice Lispector foi o caso por ter morado lá, acho que todas as fotografias que vi dela na praia eram no Leme, tão esfíngica como sempre. Depois Nelson Rodrigues foi o caso, ali me sentei com o seu filho Nelsinho, para ele me contar como a ditadura brasileira nunca os afastou apesar de todos os equívocos, pai com fama de reaccionário, filho prisioneiro político, e o meu fascínio pelo maior cronista do planeta só cresceu nessa esplanada do Leme. 
Finalmente, o Leme é o bairro daquele inexplicável totem carioca chamado Fiorentina, onde tantas noites de pós-qualquer coisa sempre desaguam estreias, lançamentos, festas, entre as paredes assinadas pelos astros, e as ementas com nomes de astros, filé de fulano, escondidinho de sicrano. Como dizer que nunca consegui comer nada de jeito no Fiorentina que ainda por cima não custasse os olhos da cara sem o Rio me cair em cima? O Fiorentina é um totem-tabu carioca. Do Leme.

2. E ainda teve o carioquíssimo aniversário de 2014 do meu Dylan Thomas Tupiniquim, personagem carioca destas crónicas desde 2010. Foi dias antes de eu deixar de morar no Rio, todo o mundo à noite na praia, que era a do Leme, com canga, piquenique, mergulho e lua. Qual é a boa, pergunta o carioca por isto e por aquilo, a cada estação, a cada momento; pois no Verão, naqueles dias que prometem 40 graus com sensação térmica de 50, a boa é praia de noite. E, estando no Leme, não tem curva que vá mais longe que esta, até à outra ponta de Copa, um sem-fim.

3. Com tudo isto, o Leme para mim sempre foi a frente: esplanada, praia, dia ou noite. Mas por acaso, agora, um amigo está a morar nas traseiras do Leme.

4. Por acaso não é por acaso, só mania de português de Portugal. Acho que nunca me tinha apercebido disso até Tatiana Salem Levy, a minha amiga carioca mais lisboeta, chamar a atenção. Português de Portugal diz por acaso a torto e a direito. Como diz gostava quando quer dizer gostaria. Carioca cai na gargalhada: gostava de ir ao cinema quer dizer que já não gosta??? 

5. Só para chatear, como no refrão de um velho samba, podemos até dizer: por acaso, gostava de ir ao cinema.

6. Mas o facto é que não foi por acaso que o meu amigo se mudou para as traseiras do Leme. Antes porque os preços no Rio se tornaram aquele escândalo, e agora ele paga 800 (oitocentos) reais de aluguer, menos do que o condomínio em certos prédios da Zona Sul e menos do que um quarto assim-assim em Lisboa. Porque as traseiras do Leme significam morro, um morro que são duas favelas: Babilónia e Chapéu-Mangueira (não confundir com a Mangueira, bairro e escola de samba, bem longe de Copa). Então, depois de comermos um hummus no Amir, que é o árabe do Lido (e o Lido é a passarela das prostitutas e dos travestis que vivem dos gringos que enchem os hotéis de Copacabana), caminhei com o meu amigo pelas traseiras do Leme até àquela esquina com o nome de Ary Barroso. Aí, nos graffiti coloridos, começa a subida.

7. Seriam umas dez da noite e já dava para ver a movida só na primeira inclinação, táxis e mototáxis subindo e descendo. Este morro virou um point, como dizem os cariocas. O primeiro bar que avistei até se chamava qualquer coisa Point. E chegando ao fim dessa primeira inclinação, para a direita é Chapéu-Mangueira, para a esquerda Babilónia. 

8. Não por acaso, a bifurcação estava cheia de Polícia Militar de espingardão em riste. Há anos que o morro tem uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), aquela tal política em que a polícia se instala na favela em vez de entrar e sair a matar. Acontece que dois dias antes havia balas a passar na varanda do meu amigo. Sem me adiantar no complexo xadrez facções do tráfico-polícia, digamos que Chapéu-Mangueira é território de uma facção, Babilónia de outra e que as brechas do tal programa de pacificação policial estão a abrir por todos os lados, até nos morros cartão-postal, como a Babilónia.

9. Este cartão-postal tem até tapete vermelho. Em 1959, ganhou Palma de Ouro em Cannes e Óscar em Hollywood, porque foi aqui que se filmou Orfeu Negro, essa espécie de musical-naïf, com banda sonora de Jobim e Vinicius. Aliás, foi por causa do Orfeu que eles se conheceram, Jobim e Vinicius. 

10. Virámos à esquerda para a Babilónia. Que metáfora que nada, qualquer metáfora está aquém do Rio, mito no Rio é literal: virámos à esquerda para a Babilónia. É lá que fica a casa do meu amigo, quer dizer, lá depois de trepar, e trepar, e trepar.

11. Rapidamente termina a largueza de carros, começa a estreiteza das motos e depois a estreiteza de só nós, passando entre escadinhas, vãos, becos. Morar realmente na favela é isto, subir pelo próprio pé mil vezes ao dia, viver de certa forma como os gatos, que aliás enchem o labirinto da Babilónia. A missão deles é extinguir baratas e ratos. Os gatos da Babilónia são uma higiene. A verdade é que não vi nenhuma barata, nenhum rato, ao contrário do que acontece, digamos, quase todos os dias quando volto a casa (não ratos, mas baratas, sim). 

12. Morar realmente na favela é ser um gato trepador, chinelo no pé, mas mais: deixar de ver as montanhas de lixo na curva, de ouvir os rádios dos vizinhos, de temer a chuvarada na vertigem das casas. Favela é labirinto, aperto, ruído, calor, risco de desmoronamento (fora o risco de bala). Não por acaso, 800 reais, e já está caro. Porque a casa do meu amigo é bem lá no alto e acaba de ser construída. 
Então, morar na favela também é isto, acabamos de trepar o último lance, e pah!, Copacabana está aos nossos pés como eu nunca a vira, aquela cimenteira de prédios lá em baixo, o mar tão escuro como o céu, uma noite à altura do Orfeu Negro

13. Dormir bem por cima de tudo isto, e todos os dias: o lixo, o som ao redor, a fina parede que separa do abismo. Vejo o meu amigo na varanda, que é só tijolo bruto, e não vejo qualquer esforço. Não é apenas coragem, nem fazer parte. É como Jobim diz que é a Bossa Nova, sendo o avesso da Bossa Nova: tudo muito natural. 
O meu amigo vem do asfalto e volta ao asfalto diariamente, mas a casa dele agora é aqui, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. E em caso de enfarte? Em caso de emergência? Como chega uma ambulância? 
Perguntas para alguns milhões de cariocas, além do meu amigo. De resto, o amor dele enfim chegou, e que lixo, que ruído, que bala o quê, para quem sobreviveu à maior falta.

Foto
Favela Babilónia Nelson garrido

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