Autonomia e compromisso

No trabalho da etíope Julie Mehretu há o compromisso de fazer da arte lugar de atenção ao mundo e ao presente.

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Trabalhos que são lugares de apresentação do artista, do outro, do mundo Filipe Braga
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Esta exposição de pintura impressiona a vários títulos. Primeiro pela grande escala das obras apresentadas e pelo modo como essa escala é acompanhada por uma crescente intensidade e densidade pictórica; depois, porque cada pintura se revela como lugar onde se acumulam diferentes camadas de gestos, desenhos, cores, manchas, formas, não de forma casual, mas permitindo perceber uma arquitectónica especial relacionada com temas tão importantes como o direito à cidade; depois pelo modo como, sem abdicar das tensões pictóricas, icónicas e cromáticas que caracterizam o fazer da pintura, estas obras se assumem como fortes e importantes trabalhos políticos onde não se encontram nenhum tipo de propaganda, nem quaisquer tentativas de ilustrar uma qualquer ideologia; são lugares de liberdade e, nesse espaço de liberdade, assumem-se como reflexo do mundo. As pinturas e os desenhos da artista etíope Julie Mehretu (Abis Abeba, 1970) são, sobretudo, lugares de convergência onde confluem uma multiplicidade de elementos (geográficos, biográficos, pictóricos, políticos, culturais, sociais), tornando todas estas obras em lugares de apresentação do artista, do outro, do mundo.

A geopolítica, as desigualdades sociais, os conflitos políticos e maneira como a cidade e a arquitectura reflectem o mundo contemporâneo (no sentido que Wittgenstein atribui à arquitectura de ser um pensamento sobre o mundo e sobre o modo como se podem ver as coisas) são o texto que que cada obra interpreta artisticamente. Não que Mehretu queira estabelecer um comentário sobre o mundo, mas esses elementos do presente são o caudal que alimenta os seus gestos. Isto é, cada pintura toma como seu elemento pictórico de desenvolvimento o presente não enquanto elemento por interpretar cromática e pictóricamente, mas como motivo estruturante: a base de cada pintura são cartas militares, plantas de arquitectura, fachadas de edifícios, mapas celestes, desenhados e utilizados como fundo sobre o qual a artista actua. Mas é necessário explicitar não se tratarem de meros elementos gráficos utilizados na composição das pinturas; são estruturas activadas pela artista, elementos animados pelo gesto da pintura imprimindo a cada obra um elemento de vida, movimento, vibração.

Estas pinturas são, diz a artista, “mapas de histórias sem localização”. Esta metáfora geográfica é muito pertinente porque a ideia de mapa permite convocar não só a arquitectura, como as estrelas, a guerra, mas também o universo interno da artista: mapas onde se fixam os movimentos do seu olhar e a constituição da sua realidade interna (os livros que leu, os lugares que visitou, etc.). Por isso, pode correctamente assumir-se que cada pintura é um lugar de convergência da História da pintura — cada pintura vive da tensão entre figuração e abstracção e consegue-se perceber o modo como a artista é influenciada pelo futurismo, construtivismo e o expressionismo abstracto — e da necessidade de tomar uma posição relativamente ao mundo e a acontecimentos como o conflito na Siria ou a violência contra a população afro-americana nos EUA que são tema de muitas das obras que apresenta em Serralves.

Podemos pensar nesta obras como sendo movidas pela ambição de tornar a pintura elemento actuante e nada alheada dos nossos modos de vida, mas sem desistir do seu acontecimento enquanto pintura. E esta ambição é, sobretudo, uma declaração relativamente ao modo como Mehretu entende a arte e as diferentes dinâmicas criativas: para a artista, como se torna tão claro no notável livro que acompanha a exposição, cada gesto artístico caracteriza-se pelo compromisso ético de permanecer arte (e não comentário ou caricatura do presente) regendo-se pelas suas regras e princípios, e, ao mesmo tempo, articula uma importante atenção ao presente. Trata-se de pensar a difícil questão da relação entre autonomia artística e o dever de fazer da arte lugar de atenção ao mundo e à sua situação presente. Tensão esta que, de algum modo, fica patente no título da exposição: a arte é simultaneamente uma história de tudo e de nada. É essa a sua condição: poder ser tudo e nada ao mesmo tempo. E esta condição longe de ser um paradoxo, é a tensão misteriosa que alimenta o gesto criativo que se descobre ser por um lado totalmente autónomo e, por outro, totalmente comprometido com o seu presente.

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