Atenas

Durante a manifestação pacífica, diante do Parlamento, duas crianças brincavam com os panfletos da propaganda fazendo origamis. Estavam sentadas no chão, muito abaixo dos olhos da multidão, ocupadas com brincar enquanto os gregos procuravam acreditar e fazer acreditar. Desviávamo-nos delas como se de um canteiro de jardim. De todo o modo, os ânimos estavam calmos. As pessoas circulavam como por uma festa que ia começar, embora não houvesse nada para começar. A festa era apenas a sua própria antecipação. Fiquei com a impressão de que este é o estado de espírito da Grécia, hoje. Uma certa esperança difícil que, por ser o único sentimento positivo possível, é o que se espalha, embora nada evidencie garantias para uma efectiva alegria.

Um senhor envergava a bandeira de Portugal de pernas para o ar. Fui dizer-lho, pediu-me perdão, envergonhado. Desceu imediatamente a bandeira para a subir correctamente. Queria, com aquilo, apelar à solidariedade dos povos semelhantes na crise. Era-lhe importante que Portugal, Espanha, Itália ou Irlanda pudessem compreender melhor do que ninguém a justificação das intenções gregas. Eu quis saber que sinais recolhia dessa expectativa. Afinal, o que lhe parecia dos semelhantes sofredores. Encolheu os ombros. Ouvira dizer que o primeiro-ministro português era um imbecil: mas isto dos países tem que ver com os povos, os políticos são ornamentos caros. Sorriu.

O ministro da defesa, Panos Kammenos, representando a extrema-direita com quem o Syriza precisou de constituir Governo, disse recentemente que se a Europa não ceder será inundada por gregos à procura de emprego e jihadistas. Ameaça conceder vistos de livre circulação pelo Espaço Schengen a terroristas que se queiram infiltrar em Berlim. Lembro-me da manifestação pacífica em que estive e sinto-me agredido na ínfima esperança de que o Governo grego pudesse trazer à Europa um juízo que lhe anda a faltar. Sabemos todos que a Europa está a falhar, sabemos bem que a Alemanha extrapola largamente a sua posição, que devia ser paritária, e se coloca como governo-sombra do Parlamento Europeu. No entanto, o advento dos jihadistas é eventualmente a mais horrenda manifestação de horror dos nossos dias, apontando para uma acção absolutamente desprovida de razão, sem limites e humilhante para a simples definição de humanidade. Qualquer conivência, por mais distante ou irónica, por mais desesperada ou distraída, com o terror jihadista é uma violação insuportável de toda a diplomacia, amizade ou vizinhança pacífica. Depois de uma declaração destas, a Grécia não deve ponderar se abandona ou não a União, a União deve urgentemente ponderar se expulsa ou não a Grécia. Saber se as dores da Grécia são legítimas é outra coisa. Mas dores nenhumas podem servir para que um país se arrogue ao direito de ameaçar os outros na mais elementar gestão do terror.

Varoufakis explica que, afinal, farão tudo para que a Alemanha se responsabilize pela destruição causada com a Segunda Guerra Mundial. Não acho obsceno, muito pelo contrário. O rigor alemão para com as contas dos outros precisa de ser aplicado às suas próprias obrigações. Se outrora se viu perdoada, quando pobre e perdedora, é legítimo que os povos hoje em dificuldades lhe assaquem responsabilidades porque, afinal, estará agora capaz de as assumir. Contudo, ainda que a memória da guerra perdure, e deve perdurar, para que nunca se repita, para que nunca deixe de ser um tópico sobre o nojo de tão grande erro, prometer jihadistas é terminar o diálogo, porque já não é um diálogo que se estabelece, apenas um demente modo de procurar extorquir da Europa uma benesse que imediatamente se deixou de merecer.

De mal a pior, a Europa está à deriva. Quando Saramago previu a jangada de pedra, não percebeu logo que a jangada seria maior, porque também a incúria é muito maior do que, a cada passo, imaginamos. Com o terrorismo de hoje, o regresso das xenofobias e dos racismos, os ódios extremando-se por toda a parte, a contemporaneidade é um desgosto. O que é trágico nisso é o sabermos mais e muito melhor do que fazemos. Cometeram-se todos os erros, faltava apenas aprender com isso e manifestarem-se todas as virtudes. Não acontece. É pena.

Subitamente, sinto que fui a Atenas comer umas belas saladas com queijo feta. O resto ainda estou para ver que raio foi.

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