As palmas no final também são para eles

Desenhadores de luz, produtores, compositores de bandas sonoras, assistentes de encenação. Todos eles têm uma palavra a dizer nos espectáculos. O palco também é deles – e sem eles, as artes performativas não seriam a mesma coisa.

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Há muitos trabalhadores das artes performativas que, apesar de não terem o papel de protagonistas, são essenciais para a concepção de um espectáculo paulo pimenta

Há muita coisa que pode acontecer em cima de um palco e à volta dele. Antes e durante um espectáculo. Quem faz acontecer não são apenas os encenadores e os coreógrafos, os actores e os bailarinos, os dramaturgos. Há muitos outros trabalhadores das artes performativas que, apesar de não terem o papel de protagonistas, são essenciais para a concepção de um espectáculo.

Desenhadores de luz, cenógrafos, figurinistas, mestras de guarda-roupa, compositores de música, produtores, assistentes de encenação e de dramaturgia, directores de cena, preparadores de voz, tradutores (e isto não acaba aqui). O palco também é deles, apesar de estarem nos bastidores e de tantas vezes serem afastados para segundo plano. E sem eles, o teatro e a dança não seriam a mesma coisa – noutras etapas, também são importantes agentes como os assessores de imprensa, os fotógrafos dos teatros, os assistentes de sala e frente de casa.

“Um iluminador é um colaborador artístico, como um cenógrafo ou um compositor”, introduz o desenhador de luz Daniel Worm d’Assumpção. Não são, ou não deviam ser, um mero anexo, executores de uma função. “É muito mau quando se tenta resolver um problema de encenação com a música, por exemplo, como se se tratasse de uma funcionalidade”, nota Rui Lima, que faz bandas sonoras para espectáculos em conjunto com Sérgio Martins. No caso da luz, “é importante perceber que tanto a iluminação como a encenação são transversais ao espectáculo”, sublinha Daniel Worm. “A iluminação é afectada por todos os elementos da criação, seja o som, a cenografia, os figurinos, a interpretação. Não é um complemento da cenografia nem do texto.”

Também eles são autores de algo. Mesmo quando se entra em áreas mais práticas (e em que se tem de lidar directamente com dinheiro), como a produção. “Há uma autoria porque há maneiras diferentes de fazer. Há um tom dado pela produção, que se nota sobretudo em festivais”, observa Inês Maia, directora de produção do Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP). “No meu caso, o que procuro é um tom que transmita fidelidade e segurança, dentro e fora das equipas.”

Contudo, não há espaço para ego trips: o objectivo é contribuir da melhor forma para a criação. “Por vezes a música passa despercebida no espectáculo. Se é assim é porque tem de ser. A ideia não é tentar impor uma presença”, explica Sérgio Martins. Também por isso, e para ninguém se atropelar, é importante acompanhar os projectos desde o início. “A luz, enquanto algo efémero, vive sobre o presente. Portanto, em vez de fazer uma abordagem dramatúrgica a partir dos textos, prefiro estar presente no trabalho de mesa e perceber toda a conversa que ali se estabelece”, diz Daniel Worm.

Wilma Moutinho, também desenhadora de luz (e neste departamento merecem referência outros nomes como Rui Monteiro, Nuno Meira ou José Álvaro Correia), concorda com o colega. “Tem de haver um trabalho de equipa, isso nota-se no resultado final”, afirma a colaboradora regular dos coreógrafos Victor Hugo Pontes e Marco da Silva Ferreira. Depois, o método do trabalho de casa depende de cada um. “O som não passa só por fazer uma banda sonora. É preciso pensar no desenho de som, em como pôr um efeito num actor, onde situar as colunas… Há todo um trabalho técnico-estético além da composição”, esclarece Rui Lima. “Eu faço muita investigação dos temas da peça e inspiro-me em pintura, fotografia, na natureza”, conta, por sua vez, Wilma Moutinho. “Para mim fazer iluminação é como pintar um quadro.”

E é nesse quadro que entram os figurinistas, os cenógrafos (de quem falámos no Verão passado, alguns deles também figurinistas – daí não aparecerem nestas páginas) ou as mestras de guarda-roupa. Como é o caso de Aldina Jesus, residente na equipa do Teatro Nacional D. Maria II, que já colaborou com companhias como a Mala Voadora ou a Cão Solteiro. Uma mestra de guarda-roupa, explica Aldina, trabalha em conjunto com o figurinista. “Ajudo na pesquisa de tecidos, faço os moldes, os cortes e, caso não haja equipa de costureiras, trato da confecção.”

Tudo tem de se adaptar “à necessidade dos intérpretes, aos seus movimentos, ao espectáculo em si”, assinala Aldina Jesus. O seu raio de acção depende ainda do “saber do figurinista” – um encenador, um actor ou outro membro da equipa sem experiência em figurinos pode ter de cobrir esse papel, lembra. E essa é uma das verdades inconvenientes desta história toda: a subnutrição financeira em vários colectivos faz com que tenha de haver uma acumulação de tarefas por vezes indesejada, e nesses casos pode não ser possível dar o destaque devido a cada uma destas disciplinas. Contudo, há honrosos exemplos de desmultiplicação que não são à base do desenrasca: entre eles, Thomas Walgrave na cenografia e desenho de luz, Joana Barrios na interpretação e figurinos, ou José Capela na cenografia e figurinos.

Carne para canhão

O dinheiro é aquele assunto omnipresente. E também ele “contamina” o espectáculo, nota Vânia Rodrigues, gestora cultural da Mala Voadora. “Mais do que imaginamos”, diz. “Os processos artísticos vão sendo ajustados até serem compatíveis com os recursos disponíveis.” A batalha de Vânia passa também por aí, em diálogo próximo com os produtores da companhia, Joana Costa Santos e Jonathan da Costa. “O meu trabalho, que é um trabalho de interlocução interna e externa, vai desde acompanhar a discussão de ideias de programação e espectáculos até à procura de financiamentos, parceiros e co-produtores.”

As contingências financeiras acabam por afectar também a constituição (e a sanidade mental) das equipas. “Não há dinheiro suficiente para ter as pessoas que precisávamos para conseguir ter uma vida normal. Trabalhamos todos mais do que devíamos e geramos menos emprego do que devíamos”, aponta Vânia Rodrigues. Isso dificulta ainda uma aposta maior noutros departamentos. “Fazemos algum esforço para produzir documentação, mas queríamos escrever muito mais pois há uma enorme falta nesse campo”, observa a gestora. Numa arte que é efémera interessa “gerar conhecimento e memória”. “Não devia ser apenas carne para canhão.”

Na opinião da investigadora Ana Bigotte Vieira, devia existir uma coordenação entre vários agentes para se produzir regularmente mais teoria e documentação nas artes performativas, com um tratamento e pensamento historiográfico por trás. “Há um trabalho de memória, teoria, crítica e tradução que precisa de tempo, em contrapartida com o ritmo voraz destas artes efémeras”, diz. “Esse trabalho ganhava com uma aproximação à Universidade”, mas também aqui há “todo um contexto de precariedade”, recorda Ana, que é uma das autoras do novo livro Teatro Português Contemporâneo – Experimentalismo, Política e Utopia [título provisório], coordenado pelo dramaturgo Rui Pina Coelho e cujo lançamento vai acontecer no D. Maria II a 16 de Setembro.

Apesar de tudo, encontram-se bons exemplos nesta área. Como a revista Sinais de Cena; o Centro de Documentação de Artes Performativas e Mediateca, inaugurado em finais do ano passado no espaço Rua das Gaivotas 6, em Lisboa, coordenado pelo colectivo Teatro Praga; a colecção Livrinhos de Teatro, uma parceria entre os Artistas Unidos e a Cotovia. Também o Teatro Maria Matos, inclusive nos projectos e publicações promovidos no âmbito da rede internacional House on Fire; a Colecção de Textos e a Colecção Estudos do D. Maria II; e, claro, o Centro de Documentação do Teatro Nacional São João (TNSJ), para o qual contribui o Departamento de Edições da instituição, activado por Pedro Sobrado, João Luís Pereira e Ana Almeida.

No TNSJ sempre se prestou atenção aos projectos editoriais, mas passou a haver um maior investimento a partir de 2002 – ou seja, a partir do segundo mandato da direcção artística do encenador Ricardo Pais. “O preceito passou a ser ‘uma palavra vale mil imagens’”, enquadra Pedro Sobrado. Esse investimento incluiu a criação dos manuais de leitura, dedicados às produções da casa, e o desenvolvimento de programas de sala mais aprofundados, o que “passou sobretudo por privilegiar textos inéditos”. “Tal como o Ricardo [Pais], também o Nuno Carinhas [actual director artístico e encenador residente] valoriza imenso a documentação dos projectos e a reflexão crítica”, indica Pedro Sobrado. “Ele próprio se municia de todo esse material para as suas criações.”

Também a equipa das edições acompanha bem de perto o trabalho de Nuno Carinhas. “Estamos presentes à mesa, nos ensaios”, revela João Luís Pereira. “Tudo o que é escrito e impresso na casa é escrito, editado ou suscitado por nós, portanto é importante trabalharmos em equipa”, continua João. Mesmo as traduções de livros são “testadas pela cena”, acrescenta Pedro.

Numa casa onde “muitas vezes todos se sentem técnico-artistas, do porteiro ao Departamento de Edições” – diz Pedro Sobrado, citando Ricardo Pais –, há funções que se acabam por cruzar. Pedro tem feito também trabalho de dramaturgia em produções do TNSJ, como aconteceu em Macbeth, estreado este ano. E como aconteceu no monumental Os Últimos Dias da Humanidade (2016), ao lado de Nuno Carinhas, Nuno M. Cardoso e do colega João Luís Pereira. “Nessa peça havia uma massa de texto gigante [da autoria de Karl Kraus] e nós ajudámos no processo de escolha”, conta João. “O trabalho do dramaturgista pode ser multiforme”, nota Pedro Sobrado. Nesse caso, “foi uma modalidade polida de vandalismo”.

Espírito de equipa

Uma encenação pode meter várias pessoas no seu caminho, com diferentes competências. Por exemplo, um preparador de voz e elocução. João Henriques tem feito esse trabalho em teatro, sobretudo para o TNSJ, com quem colabora há 15 anos. O processo, mais uma vez, passa por acompanhar a criação desde o arranque. “Durante a discussão do texto eu começo a olhar para ele da perspectiva da oralidade, já a pensar no som das palavras”, explica João Henriques.

O passo seguinte é examinar o desempenho vocal dos actores. “O que mais me interessa é perceber se as imagens que o texto encerra estão a ser tridimensionalizadas no som. Isso tem a ver com a expressividade e de que modo a voz confere uma mais-valia de sentido, quer acentuando, contradizendo ou ironizando.” Quando finalmente os actores têm o texto na memória, é hora de trabalhar “as questões da articulação, da prosódica da fala, da projecção e do posicionamento da voz no espaço”. É um labor meticuloso operado em sintonia com o encenador, refere João Henriques, e que pode incluir sugestões de interpretação. “Por vezes toca a direcção de actores.” Antes da estreia dos espectáculos, e muitas vezes durante as apresentações, o preparador vocal treina directamente com os intérpretes. “No fundo é um coaching, como se eu fosse um personal trainer da voz.”

Esse lado de coaching também está presente na assistência de encenação. “É um trabalho de muita palavra, atenção e ânimo.” Quem o diz é Filipa Matta, 25 anos, actriz de formação que foi parar à assistência de encenação, não sabe “muito bem como”, mas que já trabalhou com vários criadores, de Pedro Gil a Tónan Quito, de Raquel Castro (fez assistência no espectáculo O Olhar de Milhões, que estreia em Outubro) a Tiago Rodrigues, director artístico do D. Maria II, com quem esteve na trilogia das tragédias gregas. Para Filipa, um assistente de encenação “é uma figura dentro do projecto mas com alguma distância” – e que por isso está apto para dar opiniões de encenação e interpretação “mais independentes”.

“Podes ser também um fio que liga as pessoas da equipa, do encenador aos actores, do cenógrafo ao figurinista”, acrescenta Filipa Matta. Quem faz acontecer, com mais ou menos protagonismo, são todos eles. Se houver palmas no final do espectáculo, são para todos.

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