As mãos no ombro

Adaptando Patricia Highsmith, Todd Haynes encontra um equilíbrio feliz entre o seu formalismo fetichista e a solidez de uma história feita à medida de duas actrizes em estado de graça.

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Cate Blanchett é absolutamente imperial no papel de Carol

Logo na primeira cena de Carol, o ombro de Rooney Mara é tocado por duas vezes: a primeira por uma mulher, Cate Blanchett, a segunda por um homem, Trent Rowland. A câmara de Todd Haynes concentra-se no modo como as mãos tocam no ombro de Mara e como ela lhes reage, e ao fazê-lo explicam como Carol vai ser um filme de detalhes que simbolizam algo de maior, que definem uma personalidade; uma história de subtis tremores que têm de ser mantidos escondidos, íntimos, para não perturbar a sociedade americana dos anos 1950. Curiosamente, Carol é uma produção inglesa – e nem é assim tão surpreendente que o seja, visto que esta adaptação de um romance de Patricia Highsmith é a história de uma paixão proibida que subverte o status quo social, patriarcal, classista, entre uma mulher mais velha, bem casada e afluente, e uma mulher mais jovem de classe trabalhadora.

Nesse mesmo movimento, contudo, Carol inscreve-se de armas e bagagens na linhagem do cinema fetichista do americano Todd Haynes, que regressa aqui à lógica da women’s picture dos anos 1950 depois do delírio Sirkiano de Longe do Paraíso (2002) e da sua remake televisiva de Mildred Pierce (2011). Haynes é um glorioso formalista para quem o estilo foi sempre a “porta de entrada” para a essência do seu cinema. Deleita-se na reconstituição perfeita da Nova Iorque e dos subúrbios americanos dos anos 1950 com um impressionismo que não raras vezes remete para Hopper (a fotografia de Ed Lachman é um mimo), delicia-se com a obliquidade de ver as suas personagens prisioneiras ou observadoras, impotentes ou transgressoras, por trás de janelas, vidraças, arcadas, espelhos, mas sempre à distância. A diferença é que, em Carol, esse formalismo, sendo central para um filme onde as fachadas constrangem e aprisionam as personagens, não é o seu centro nem afoga tudo o resto. São os olhares, os gestos, as expressões que dizem tudo.

Haynes sempre foi um excelentíssimo director de actores e, sobretudo, de actrizes (basta lembrar Julianne Moore em Seguro e Longe do Paraíso), e Carol vê esse talento atingir o seu zénite. São as actrizes quem dá o embalo a este “amor que não ousa dizer o seu nome”: Cate Blanchett é absolutamente imperial no papel de Carol, prisioneira das aparências de uma sociedade patriarcal, simultaneamente sedutora predatorial, mãe-coragem, vítima; Rooney Mara talvez nunca tenha estado tão bem como na sua Thérèse tacteante, hesitante, entre o desejo e a segurança. Acima de tudo, é por elas e pela atenção que Haynes dá à sua presença física que Carol tem uma gravitas, um peso que os seus anteriores filmes, demasiado conceptualizados ou estilizados, nem sempre atingiam. É um caso feliz de encontro entre um cineasta e um filme que lhe pede o que ele tem de melhor – e que ele dá, sem problemas.

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