As imagens da dor humana não sobrevivem num mar de consumo

Nas Carpintarias de São Lázaro, em Lisboa, Alfredo Jaar oferece uma experiência de fotografia que salva a memória do sofrimento humano. Contra o esquecimento, o desperdício e a descontextualização das imagens.

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Daniel Rocha

A luz torna-se tão intensa que consome a imagem. Instala-se mesmo um desconforto físico, próximo da cegueira, que só ao fim de alguns segundos, no exterior da sala, desaparecerá. Qualquer coisa da própria imagem, no entanto, parece permanecer no espírito daquele que a viu.

Shadows, de Alfredo Jaar (Santiago do Chile, 1956), existe muito para lá do espaço físico que a contém, no interior das Carpintarias de São Lázaro (Lisboa), até 3 de Setembro. É como se resistisse a abandonar o espectador, na expectativa de que ele possa voltar a ver e a ver melhor. Este tem sido, há várias décadas, um dos principais objectivos do artista chileno, radicado em Nova Iorque: proporcionar uma aproximação reflexiva e solitária às imagens fotográficas, especialmente àqueles que fixaram a dor, o sofrimento e o trauma de homens e mulheres. Foi assim na instalação Faces (1982), com os rostos de chilenos assassinados pelo regime de Augusto Pinochet, no projecto Let There Be Light sobre o genocídio do Ruanda (1994-1997) ou com The Sound of Silence (1995), elegia conceptual dedicada ao fotógrafo sul-africano Kevin Carter.

Volte-se à imagem que a luz consumiu. Foi realizada em 1978 pelo fotojornalista holandês Koen Wessing (1942-2011), na Nicarágua, durante a revolução sandinista, e capta a agonia de duas mulheres no preciso momento em que souberam do assassinato do pai. Eis a cena que o espectador vê, antes de a escuridão engolir a sala e os dois corpos se transformarem em contornos iluminados, e logo a seguir, em luz.

Shadows faz parte de uma trilogia, cujo primeiro momento corresponde a The Sound of Silence, instalação na qual Alfredo Jaar concebeu uma outra experiência da famosa e controversa fotografia do sul-africano Kevin Carter (1960-1994): a da criança sudanesa, subnutrida, cuja morte um abutre parece aguardar. ”Quando fiz esse trabalho, utilizei muito texto. É um filme que dura oito minutos, com muito texto, muitas palavras”, explica. “Só por uma fração de segundos mostro a fotografia. Em Shadows não há texto. Utilizei a estrutura inspirado numa obra do próprio Koen Wessing”.

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Em 1973, o fotojornalista holandês estava no Chile quando se deu o golpe militar e durante duas semanas fez aquilo que o seu trabalho e a humanidade lhe exigiam. Fotografar, fotografar até ao fim dos rolos, os terríveis acontecimentos que se desenrolavam à sua volta. De regresso a Amsterdão, fez um pequeno livro, Chile Setembro 1973, sem uma única palavra. “Contou a história do Chile desse mês, apenas com imagens. Decidi, então, fazer a exposição com a mesma estrutura para explicar a imagem que ele realizou na Nicarágua em 1978”. Para além da fotografia principal, Alfredo Jaar escolheu mais seis imagens a partir das provas de contacto do fotojornalista. Três das cenas que ocorreram antes, e outras três das cenas que ocorreram depois. “A fotografia de Wessing sempre me fascinou. Mostrava a expressão da dor numa coreografia da morte. Os gestos daqueles corpos revelavam todas as emoções, todos os sentimentos que uma notícia como aquela pode provocar num ser humano. E decidi criar uma mise-en-scène para comunicar a fotografia ao público”.

Um equilíbrio entre a informação e a poesia

Num só gesto, Alfredo Jaar homenageava a actividade do fotojornalista e lembrava aos espectadores a força que as imagens ainda conservam. Este pendor pedagógico do seu trabalho, que alguns poderão considerar condescendente, ganha outro significado no contexto actual da circulação de imagens. “É um fenómeno inédito. Os novos media, as novas tecnologias, as redes sociais criaram uma saturação extraordinária. Nunca a sociedade esteve exposta a tantas imagens e, ao mesmo tempo, e isto é um paradoxo, nunca houve tanto controlo por parte dos governos e das grandes empresas. Recebemos as imagens sem aviso prévio e sem misericórdia”. Para Alfredo Jaar, cada imagem contém uma concepção do mundo, corresponde a um manifesto ideológico que vende produtos ou ideias. Daí a urgência em fornecer aos espectadores ferramentas que lhes permitam interpretar e pensá-las criticamente. “Educa-se a ler e a escrever, mas não a ler as imagens. Esse é um grande problema, pois as imagens ensinam-nos a ver o mundo, comunicam-nos ideias sobre o mundo. Por isso, encaro o meu trabalho como indissociável de uma política das imagens. Quero dar espaço e tempo aos espectadores para que compreendam a força de cada imagem”.

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Ver imagens fotográficas no âmbito do trabalho de Alfredo Jaar, implica a existência de certas condições. Há um contexto prévio, uma metodologia, que, mais ou menos escondida numa instalação como Shadows, se impõem ao espectador. “Crio uma mise-en-scène para que o espectador capte mais intensa e lentamente a imagem. Quero informar e quero comover, se quiser, busco um equilíbrio muito difícil entre a informação e a poesia. A imagem tem que informar com síntese, mas tem que emocionar, iluminar. Essa é a função da arte. Quando se consegue as duas coisas, a experiência é sublime. Mas a maioria tende a falhar. Quando são muito informativas, a informação esconde o lado poético, quando são muito poéticas, é porque a beleza esconde a parte do conteúdo. Procuro sempre alcançar um equilíbrio”.

A idade de ouro do fotojornalismo acabou

Alfredo Jaar permanece um adepto do fotojornalismo, da sua história e dos seus protagonistas. O seu olhar em torno das obras de Koen Wessing (a propósito, uma das suas fotografias, também da Nicarágua, é comentada por Roland Barthes em A Câmara Clara) ou de Kevin Carter nada tem de paternalista. Quando se apropria das fotografia destes profissionais, tem como fim não engrandecê-las, mas resgatá-las do esquecimento que as ameaça, trazê-las para o domínio de uma experiência menos mundana ou imediata.

Hoje, contudo, essa transposição parece mais complexa: “Quando Keil Wessing foi à Nicarágua fotografar o regime de [Anastacio] Somoza tinha dois rolos, 72 fotos. Hoje os jornalistas fazem 500 fotos de uma cena com a ilusão de que vão captar um momento muito especial. Nos anos 70, 80, havia um respeito pelo material, pela foto, pelo momento decisivo de que Henri Cartier-Bresson falava, pelo captar desse momento humano. A tecnologia fez desaparecer esse sentimento, a máquina afastou essa necessidade. Fazes uma reportagem e no laboratório encontras 1500 fotos. O Wessing soube o que era esse momento, teve um contacto real com as vítimas, com a realidade. Penso que a idade ouro do fotojornalismo já passou”.

A opinião do artista pode soar polémica ou até refutável, mas os argumento que a sustentam merecem consideração: “As novas tecnologias criaram ferramentas que já não necessitam desse contacto humano. Agora existem lentes com uma tal capacidade de focagem que os jornalistas não necessitam de estar perto das pessoas. Podem estar muito longe. Esse é um dos efeitos do digital. Por outro lado, podemos guardar 50 gigabytes de fotos. Já não há limite, não há filme, nada nos impede de acumular fotografias e mais fotografias. É nesse sentido que afirmo que não há respeito pela fotografia”.

Entretanto, as imagens não cessam de circular, num movimento ininterrupto, imparável. O que pode fazer um leitor de jornais ou um espectador de telejornais face a esse fenómeno? Alfredo Jaar reconhece a complexidade do presente, a impossibilidade de obtermos informação apenas de um meio de comunicação social, o facto da descontextualização da imagens se realizar a um ritmo mais rápido. O que fazer, como pensar? Um ponto de fuga pode estar no repto que a necessidade de compreensão faz a todos os espectadores: “Quero dar sentido às imagens. Tenho essa necessidade. Por isso preciso de as entender, e para as entender preciso de as investigar. Preciso de ver como se apresentam sob diferentes pontos de vista, sejam sociais, culturais ou ideológicos. E só depois chegar à soma de todas essas representações ou pontos de vista, traduzo ou concebo uma ideia do que pretendem transmitir. Mas vivemos uma fase muito difícil e o espectador comum está completamente desorientado. Os meios de comunicação já não vendem apenas notícias mas também espectáculo e publicidade que se confunde com notícias. Como resiste uma imagem de dor num mar de consumo? Não sobrevive. A não ser que uma tomada de consciência sobre a força das imagens se torne mais generalizada."

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