As estratégias do esquecimento
Um dos grandes autores espanhóis, Juan Marsé, escreveu um romance que pode ser uma espécie de parábola sobre os mecanismos da memória colectiva.
No seu mais recente romance, Juan Marsé (n. 1933) conta-nos como em 1982, a pedido de um produtor e de um realizador de cinema aceitou a encomenda da escrita de um guião cinematográfico cuja história seria baseada num crime, num acontecimento real: numa tarde de Janeiro de 1949, uma prostituta, Carolina Bruil, é assassinada na cabine de projecção do cinema Delicias, em Barcelona, pelo projectista, Fermín Sicart. Mais tarde, este acaba por confessar diante do juíz que estrangulou a vítima com uma fita de celulóide, mas é incapaz de recordar os motivos que o levaram ao acto. Na justiça, e de maneira atabalhoada, o motivo acaba por ficar registado como sendo o resultado de um acto de loucura temporária. Pelo meio há uma figura sinistra, um psiquiatra militar, o coronel Tejero-Cámera, que consegue apagar ao assassino as memórias da motivação que o levou ao estrangulamento da mulher.
Note-se que na época em que o narrador situa a acção, correm os chamados “anos da Transição”, o período entre a ditadura franquista e a democracia. Não sendo um romance abertamente político (tem apenas as inevitáveis ressonâncias), é quase inevitável que aos poucos este começe a soar ao leitor como uma divagação ágil em redor da memória colectiva como uma máscara feita de armadilhas e de ciladas; uma espécie de parábola sobre os seus mecanismos. Aliás, o autor, logo no início do livro, apresenta as respostas a uma hipotética entrevista (as perguntas foram omitidas) em que esclarece que o livro em que vai trabalhar será sobre os estratagemas da memória, “essa puta tão distinta” (assim justifica o título provocador). Mais adiante, e para aclarar a importância da memória e da realidade contada, acrescenta: “Na minha ficção, a vivência real submete-se à imaginação, que é mais racional e credível. Na parte inventada está a minha autobiografia mais verídica.”
Toda a história narrada em Essa Puta Tão Distinta está pontuada por referências ao cinema, não apenas por se tratar — de uma forma ou de outra sobre a escrita de um guião (“um texto para usar e deitar fora”) — mas porque a escrita de Marsé foi sempre bastante cinematográfica nas suas “imagens” e também nos diálogos assertivos — Marsé nunca conseguiu esconder o seu encanto pelo cinema, por um lado tão característico dos intelectuais da sua geração como reacção ao cinema franquista (“cinema nacional-católico [que] gerou tanta miséria moral e estética”). Neste romance, a personagem Felicia, criada do narrador, acredita que é no cinema que pode encontrar o segredo de saber viver, escondido na fala de um actor ou num qualquer plano inesperado.
A escrita de Juan Marsé, sempre ágil, irónica e lúcida, é visivelmente um “ofício de trevas”, de procura de algo que lhe parece fugir de maneira constante, uma espécie de luta do escritor para tentar dar sentido às palavras e à história. E ele fá-lo ciente disso, dessa qualquer coisa que está para lá do que é pensado, pois sabe que “num bom romancista, o que brilha não é o intelecto, é outra coisa.” Por isso, neste romance “nada é o que parece”, mesmo quando o narrador chega à fala com o assassino, já então um ancião desmemoriado, e falam de maneira vívida sobre um passado que ambos presenciaram, mas com a conversa sendo sempre atravessada por invenções, por suspeitas, por factos inexactos, tudo sem motivações e sem culpa. O leitor chega ao fim sem saber muito, apenas com suspeitas, interroga-se sem resposta, por exemplo, se o assassino seria ou não filho de uma prostituta, ou se a mulher estrangulada seria ou não informadora da polícia. Mas nenhuma destas respostas interessa a Marsé, porque neste livro não existe nenhum psicopata para ser posto atrás das grades e o assassino já confessou o crime. Há, como em todos os grandes romancistas, a vontade de contar e de se descobrir contando: “Escrevo para saber se fui de facto o protagonista da minha vida, como o David Copperfield.”