Arte de amar

Estes contos são como uma nova arte de amar, muito depois de Ovídio.

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Há gradações e acertos, arritmias e modulações nos encontros arquitectados em Ronda das Mil Belas em Flor FOTO: ENRIC VIVES-RUBIO

Eis uma “arte de amar” dois mil anos depois de Ovídio. No amoralismo que despreza o “proselitismo da monogamia” (p.98), na plenitude da fruição e no cinismo irónico do narrador – “Não há amores eternos. Já basta que não sejam infelizes.” (p.80) –, este é um livro bastante “romano”.

O narrador corta cerce qualquer assomo de sentimentalismo, depondo sobre ele o tempero derrisório – “Há uma sugestão qualquer de mistério que não me apetece averiguar. Violinos, e tal. Adeus, minhas encomendas.” (p.13)

As forças que ele convoca para o debate amoroso revelam a arena da sexualidade como combate de vontades, exercício obstinado do desejo. Nesse sentido, estes contos criam o seu próprio código de conduta, que obedece apenas ao fluir do sangue e ao chamado do corpo. O seu “classicismo” advém de uma posição que está à margem de considerandos morais, retumbâncias metafísicas, volutas de análise. O relâmpago da intensidade sexual, a breve expressão do contacto, a captação possível do que escapa à explicação, eis o que importa à escrita deste conjunto de contos.

O título parece fazer um apelo breve ao Proust das “jovens em flor”, mas esse chamamento é, de facto, fugaz. Desde logo, o arcaísmo “frol” devolve estas invenções ao âmbito sólido da literatura portuguesa e da sua história. Um legado a que o escritor Mário de Carvalho dá especial importância, quer através da sua escrita ficcional, quer também por via de não infrequentes reflexões mais ou menos paralelas a ela. Crónicas (como as que assinou neste jornal) ou outros fóruns em que o seu apreço pelo clássico e pelos clássicos tem ressaltado. Mesmo em alguns caracteres do seu estilo – em alguns dos seus estilemas, se quisermos –, como o uso do advérbio “mui”. A “ronda” do título impõe uma superioridade numérica que conduz a possíveis associações à esfera do libertinismo ou da licenciosidade – sejam eles os mais reconhecíveis, pertencentes ao século XVIII, ou aos da Roma Antiga. Quer beba no Antigo Regime, ou na Roma de Augusto, a frialdade com que se ataca o fogo do sexo é um afluente desse rio que vem de longe. São tensões que revisitam esses leitos, mas que cavam o seu próprio padrão. Certa visão clínica, fria, é análoga, ao longo do texto destes contos, ao uso do “você”, por parte das personagens. Ou seja, não existe aqui qualquer espírito arqueológico, mas apenas um influxo, um lastro subtilmente manifestado. O voyeur inadvertido, que a dado momento o narrador é, reflecte sobre os ângulos de um espelho (Horácio, segundo consta, teria espelhos a cobrir várias zonas do seu quarto) – “Despiu-se de costas para mim, numa ânsia quase infantil, a mostrar-se preocupada com o reflexo do espelho da cómoda que, de qualquer modo, não teria ângulo para o meu alcance.” (p.44)

Há gradações e acertos, arritmias e modulações nos encontros arquitectados em Ronda das Mil Belas em Flor. Eles não decorrem todos no mesmo molde, nem de acordo com iguais princípios tácitos – e sempre falíveis. Apesar da primeira pessoa que domina todas as narrações, e a despeito da orientação que persiste num narrador que parece uma variação do mesmo, ou é exactamente o mesmo – como a “garçonnière dum amigo” (p.19) que alberga os encontros sexuais se vai repetindo ao longo dos contos –, há algo de um catálogo de amores, como em Ovídio, uma diversidade que corre para a unidade do sexual, depois de percorrer os caminhos mais diversos até lá. Há imagens de mulheres guardadas “em arquivo” (p.81) pelo narrador, volvido vigia permanente do sexo feminino, condição assumida sem rebuço (palavra do apreço de Mário de Carvalho) – “Já tinha reparado naquela mulher, como não?, reparo em todas” (p.71). Regista-se, ou tenta adivinhar-se, a “ingenuidade de mulher madura” (p.18), auscultam-se, com gosto, “umas lufas de loucura, vontade de transgressão” (p.30), questiona-se o autor, voltado também para si, “se as deflagrações se sucediam em crescendo, em mantença, ou em descendo” (p.79). E há movimentos que percorrem o espaço que vai entre o ser “sentimental” (não é bem disso que se trata…) e o sensual. Ou “perguntas sobre ritmos, êxtases, cumeadas” (p.14). Esses cambiantes são um dos índices do que há de verídico e factual nestes relatos.

Fica um sedimento no fundo de tudo. Depois de volteado, remoinhado, solvido, o preparado dos sentidos liberta um depósito que já não é a moral, mas apenas uma película breve que protege e recata. Aí resta o que o autor quis preservar, e é o fulcro nunca revelado. Seria como expor um órgão, desligá-lo do interior que é seu lugar. Assim esta escrita, que mantém como essencialidade devida o âmago das acções amatórias, dos gestos do sexo ou do afecto despido.

Mário de Carvalho é um prosador de grande atenção à língua em que escreve. Vigilante em relação às possibilidades sonoras, como à diversificação do léxico, a subtileza ou o dom laborioso da sintaxe. É, em suma, um dos mais consumados artesão do português. Repare-se, por exemplo, na estrutura binária em que se posicionam os (sempre difíceis) adjectivos – “duas entidades desnudas e esbarrondadas, que, sendo compreensivas e cooperantes, resolviam ali despedir-se” (p.42) – configura um quase conceptismo que se polariza em torno do desregrado do corpo e o constrito da linguagem burocrática. Curiosamente, é o português contra o inglês – menosprezado na ligeireza com que se descrevem umas “expressões inglesas” (p.88) –, em que este último encarna a platitude da regra e a secura instrumental reconhecíveis “nos bares das docas e nas administrações financeiras” (p.39), contra a liberdade e riqueza da língua portuguesa.

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