Arrancar imagens ao vazio

André Cepeda fotografa o Porto resistindo a uma certa ideologia da cidade como diversão, encantamento, alheamento e fuga.

As imagens do <i>Monumento ao Empresário</i> ilustram a falência de um sistema económico, social e ideológico
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As imagens do Monumento ao Empresário ilustram a falência de um sistema económico, social e ideológico
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A nova exposição de André Cepeda (Coimbra, 1976) caracteriza-se por ser uma importante síntese dos temas que têm ocupado este fotografo. Temas que devem ser entendidos não só como os assuntos através dos quais tem construído as suas imagens, mas também como as modalidades da observação e de construção fotográfica que o seu trabalho materializa e convoca.

Com o título Depois, e comissariado de Sérgio Mah, encontramos um conjunto de imagens realizadas entre 2010 e 2015 que, não constituindo um olhar antológico, começam por descrever o modo como Cepeda usa o território como elemento biográfico e a arquitectura como uma espécie de texto de que se apropria pictoricamente. Não se trata de uma preferência estética ou de, tão ao gosto corrente contemporâneo, usar os fantasmas do modernismo presentes num certo tipo de arquitectura como argumento fotográfico. A cidade, e mais especificamente a cidade do Porto, é nestas fotografias um território atravessado por tensões conquistadas pictoricamente através da construção de um olhar que não se deixa aprisionar em descrições formais ou materiais, mas tem no invisível, no enigmático, no obscuro e, como escreve Mah, nos fantasmas, os seus elementos preferenciais.

O balanço entre a cidade objectiva, materialmente determinada, tipologicamente definida, e a cidade abstracta com lugares obscuros de escondimento, de vazio e silêncio, é um dos elementos mais notáveis que toma corpo na selecção de obras apresentadas em Depois. A exposição põe em cena um jogo, tão decisivo e característico na obra de Cepeda, entre imagens com enquadramentos geométricos, muito rigorosos e objectivos (a lembrar um certo gosto pelas situações escultóricas que as imagens fotográficas podem gerar) e situações totalmente fragmentárias, expressivas e impressivas. E é no intervalo entre estas duas modalidades fotográficas, a que corresponde uma sensibilidade, que devemos compreender estes trabalhos.

Essencial ao jogo de tensões que Cepeda põe em movimento é o reconhecimento de um vazio que é condição de todas as imagens. Isto é: a inquietação produtora de imagens é, no seu caso, qualquer coisa que não se dá a ver; ele parte da compreensão de que a cidade é um lugar de transformação, inscrição e vazio e que são estes acontecimentos que fazem, constroem e definem uma cidade e, por isso, que motivam e geram imagens. É como se a cada imagem Cepeda quisesses dar visibilidade, voz e corpo, aos que a cidade sempre cala e que só a um olhar demorado se começam a revelar. Mas, paradoxalmente, a revelação destes invisíveis e fantasmas, quase sempre mantidos em precários campos de escondimento, não é um outro acontecimento na cidade, mas, bem pelo contrário, elemento revelador e decisivo na sua compreensão e definição.

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Os acontecimentos que Cepeda provoca nas suas imagens e na relação entre elas — e insista-se: estamos no campo da fotografia enquanto lugar de criação e imaginação e não face e nenhum tipo de registo documental ou de construção arquivística — são possíveis porque está em causa a prática de um certo entendimento da fotografia como arte da relação: as imagens servem como mediadores de uma intimidade construída através de uma paciente atenção aos detalhes, aos silêncios e às subtilezas materiais; estas imagens acontecem porque o Porto, a que toda esta exposição se dedica, não é para o artista uma cidade qualquer, nem um simples elemento pictoricamente interessante, mas a estrutura da sua biografia e o seu lugar diário de intimidade e relação.

Podia ainda salientar-se o modo como ao “Porto lugar de eleição nos tops turísticos” se contrapõe a realidade, porque é sempre a realidade que incita à prática fotográfica aqui em causa. Por isso, estas são imagens de resistência a uma certa ideologia da cidade como diversão, encantamento, alheamento e fuga. É neste contexto que as imagens da escultura de José Rodrigues com o título Monumento ao Empresário, inaugurada em 1992 por Cavaco Silva, então primeiro ministro, são axiais em Depois: imagens nocturnas, feitas entre 2014 e 2015, que dão conta de um monumento, na principal avenida da cidade, cujo sentido se dissolveu em conjunto com decadência, a falência e a implosão do sistema económico, social e ideológico que celebrava. Mas Depois não tem numa narrativa política crítica da actualidade o seu texto de enquadramento e justificação; é, isso sim, uma exposição que expressa uma inquietação e uma experiência que só no campo autónomo da arte encontram a sua possibilidade.

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