Um alentejano tranquilo, pintor de paisagens

Aos 80 anos, Armando Alves mantém-se em plena actividade, entre o desenho gráfico de livros e a pintura das paisagens da sua terra natal. “Sou um alentejano de raiz, tenho um amor àquela terra muito especial”, diz.

Fotogaleria
Armando Alves Fernando Veludo/NFactos
Fotogaleria
Armando Alves Fernando Veludo/NFactos
Fotogaleria
Armando Alves Fernando Veludo/NFactos
Fotogaleria
Os Quatros Vintes (1968-71): Ângelo de Sousa, Jorge Pinheiro, José Rodrigues e Armando Alves DR

José-Augusto França chamou-lhe o “alentejano tranquilo”, Eugénio de Andrade escreveu que “não se nasce impunemente no Alentejo, e menos ainda quem um dia se descobre pintor”. Falavam de Armando Alves, o pintor e designer gráfico que nasceu em Estremoz faz este sábado, 7 de Novembro, 80 anos. O aniversário vai ser assinalado este domingo com um “almoço de amigos” na Fundação Associação Empresarial do Porto.
Armando Alves é um dos nomes da pintura em Portugal da segunda metade do século XX. Nascido no Alentejo e crescido para as artes entre a Escola António Arroio, em Lisboa, e a Escola de Belas Artes do Porto, acabou por fixar-se entre esta cidade e Matosinhos, onde vive há quatro décadas. Foi um d’Os Quatro Vintes (com Ângelo de Sousa, Jorge Pinheiro e José Rodrigues, entre 1968-71), mas isso foi uma aventura efémera num percurso que começou como professor nas Belas Artes mas depois se dividiu entre as artes gráficas e a pintura. Aos 80 anos, continua a trabalhar naquilo que gosta: fazer livros e pintar paisagens.
 
Na sua vida, tinha estabelecido os 80 anos como meta ou horizonte? Como se relaciona com a passagem do tempo?
 Muito bem. A passagem do tempo é uma coisa perfeitamente natural. Nisto tudo, para além de fazer 80 anos, ou 70, ou 50, o importante é a forma e a saúde com que a gente chega a essas idades. O resto é uma coisa natural: nascemos e um dia vamos morrer... Entretanto, vamos andando e vamos trabalhando, sobretudo, para ocupar o nosso tempo da melhor maneira, fazendo, e tentando fazer bem, aquilo de que gostamos e que nos preenche a vida.
 
E continua em plena actividade profissional e criativa.
 Sim. Com os livros, nem tanto como antigamente, em que tinha uma azáfama muito grande. Trabalhava com muitas editoras ao mesmo tempo. A partir de certa altura, com esta crise que nos atinge a todos, a maior parte das editoras faliu, outras deixaram de pagar. Agora só faço mesmo livros para gente amiga, que sei que vai pagar. A alguns ofereço também o que faço. Mas, acima de tudo, é o gozo que tenho de fazer livros que me continua a animar.
 
Houve um momento em que decidiu mesmo abandonar o ensino e dedicar-se prioritariamente às artes gráficas. Porquê? Não foi uma decisão arriscada?
 Foi muito arriscada, de facto. Comecei a fazer artes gráficas ainda como aluno das Belas Artes. Na Escola do Porto havia duas exposições no final de cada ano lectivo, uma promovida pela própria escola e outra pelos alunos…
 
Eram as famosas “exposições magnas” lançadas pelo professor Carlos Ramos…
Sim, e as exposições extra-escolares, também consentidas pelo Carlos Ramos – um homem superiormente inteligente, que era o nosso director –, e que eram uma espécie de complemento, muito mais irreverentes e, de certo modo, uma resposta à instituição. Eu fazia normalmente os catálogos e os cartazes dessas exposições. Depois continuei: comecei a trabalhar com algumas editoras e livrarias. Entretanto, acabei o curso, em 1962, e fiquei logo como professor na Escola.
 
De que cadeira?
De várias cadeiras, mas sobretudo Desenho de Estátua e uma coisa que se chamava Pintura Decorativa. Fiquei como professor durante uns 15 anos – por duas vezes. Mas depois saí, optando definitivamente pelas artes gráficas, já nessa altura com um desafio do meu amigo José da Cruz Santos. Ele estava a lançar a editorial Inova e desafiou-me para a dirigir graficamente. Foi nessa altura que tomei a grande decisão de escolher: ou era o ensino, ou as artes gráficas. Fazer as duas coisas ao mesmo tempo, sobretudo fazê-las bem, era extremamente difícil. O tempo não o permitia. As artes gráficas era uma coisa de que eu gostava muito, realmente. E  sentia que, trabalhando bem nessa área, podia ser uma fonte de rendimento, no futuro, superior ao da própria Escola, que pagava muitíssimo mal.
 
Teve alguma formação específica nessa área?

Não. Na Escola não havia. Eu é que me interessei imenso por isso. E tinha a formação da vida. Gostava de ver o que era bem feito, o que vinha de fora: os livros, as revistas – a Paris Match, que na altura era uma revista de topo, que me encantava e onde aprendi muita coisa. Aprendi a ver coisas bem-feitas que vinham lá de fora e depois a tratá-las de outra maneira, com a minha sensibilidade própria.
 
Há uma série de edições da Inova e da O Oiro do Dia que fez história. Por exemplo, a antologia Daqui Houve o Nome Portugal, e os sucessivos trabalhos que fez com Cruz Santos e Eugénio de Andrade. Esta foi uma parceria importante.
 Sim. O Eugénio era um homem superior, com quem me dava um prazer muito grande trabalhar, e que gostava também das artes gráficas.
 
Sabe-se que ele era muito exigente com o grafismo dos seus livros.
 Extremamente exigente, sim. Mas nunca tivemos problemas dessa ordem. Quando começou a confiar em mim e no meu trabalho, pôs-se completamente nas minhas mãos. E o que eu lhe apresentava, de uma maneira geral, era elogiado e agradecido de uma forma muito espontânea e clara.
 
Entre a sua actividade de professor, e depois de artista gráfico, que lugar é que ficou para o pintor?
A pintura manteve-se sempre. Claro que houve alturas em que eu podia trabalhar mais na pintura do que em outras. Dependia do que tinha que fazer.
 
Define-se mais como pintor do que como artista gráfico?
Sou essencialmente pintor. Mas, se analisarem bem, a minha obra gráfica é, de certo modo, a continuidade da pintura de outra forma. Está lá aquilo que aprendi na pintura. Sobretudo a depuração das coisas está plasmada na minha actividade das artes gráficas.
 
Nos anos 60 teve uma bolsa para estudar em Londres…
Não foi uma bolsa. Na minha carreira, pedi várias bolsas, inclusivamente à Gulbenkian, mas nunca tive nenhuma. Só tive, uma vez, uma visita de estudo a Londres promovida pela Escola de Belas Artes. Foi uma viagem de 15 dias…
 
Há quem associe a sua pintura à herança de Turner. Isso terá tido a ver com a sua viagem a Londres?
Tive, de facto, uma relação especial com o Turner nessa viagem de estudo. Porque, entre outros sítios, fomos à Universidade de Cambridge, e eu tive a sorte de ter na minha mão dois álbuns de aguarelas originais de Turner, que estavam encadernados. Pude folheá-las uma a uma e assim tive realmente um contacto maior com uma obra dele. Eu conhecia-o mal, nessa altura. Depois brotou em mim um interesse muito grande em conhecê-lo melhor, e fui ver tudo o que havia sobre ele. Mesmo em Londres, nos vários museus a que tivemos acesso, eu ia sempre procurar as coisas dele. E também após essa viagem. Foi o abrir de um mundo novo que o Turner me trouxe.
 
E em Portugal, quem foram os seus mestres? Já referiu a importância de nomes como Sebastião da Gama, Abel Manta, Barata Feyo, Dórdio Gomes, Júlio Resende…
 De uma maneira ou doutra, muitos tiveram a sua importância. Desde logo, ainda em Lisboa, na Escola António Arroio, por onde se passava antes de chegar às Belas Artes, tive um professor – que era também pintor, um pintor neo-realista, mas praticamente apagado –, o Arnaldo Louro de Almeida [1926-2008]. Foi sobretudo um excelente professor. Percebi, com ele, que uma coisa é o jeitinho para desenhar, que eu tinha e muita gente tem, outra é usar o desenho como uma forma de arte, e que é completamente diferente.
 
Também foi neo-realista?
 Fui, de certo modo. Quando ainda era aluno na Escola de Belas Artes fiz muitas coisas nesse campo, que estão dispersas e que já nem sei onde param.
 
Como passou, depois, para uma estética diferente? Tratou-se da libertação da exigência doutrinária, e também política, associada a esse movimento?
Tive necessidade de outra linguagem, no fundo. E procurei-a. Foi aí que passei para outra fase. Na altura, a arte que se fazia era essencialmente política, mas de grande qualidade estética, se nos lembrarmos, por exemplo, das coisas do Augusto Gomes ou do Júlio Pomar, que são realmente marcantes nessa área do neo-realismo. Todos nós que começámos nessa altura tínhamos de ser, de algum modo, neo-realistas. Depois há uma emancipação natural de quem pensa as coisas, e quer outros caminhos.
 
Voltando aos seus anos de Belas Artes. Por que escolheu a Escola do Porto em vez da de Lisboa?
 Eu fiz os quatro anos dessa escola de preparação às Belas Artes de Lisboa. Fiz ainda o exame de admissão a esta escola, e só depois é que pedi a transferência para o Porto. Eu era de Estremoz, estava a viver em Lisboa sozinho, num quarto alugado, enquanto fiz o curso na António Arroio. Fiquei a conhecer Lisboa minimamente, mas não me liguei o suficiente para gostar da cidade. Faltou-me a empatia das pessoas. Quando acabei o curso, e como teria na mesma de sair de Estremoz, quis fazer a experiência do Porto. Não só por isso, mas também porque, na altura, a Escola do Porto era mais bem cotada do que a de Lisboa.
 
Nessa altura, já era dirigida por Carlos Ramos.
Sim. E os professores eram muito mais abertos. Mas quando cheguei ao Porto vinha com a ideia de que ia fazer a minha vida sem querer saber de ninguém. Mas logo no fim dos primeiros dias de contacto com os colegas, nomeadamente o José Rodrigues e o Ângelo [de Sousa], que foram os primeiros com quem contactei mais – sobretudo o Zé Rodrigues, de quem me tornei muito próximo, tínhamos uma empatia muito forte. A casa dele abriu-se para mim, completamente, quase como se fosse a minha casa. Aquela ideia com que eu vinha de fazer uma vida sozinho, isolado de todos, morreu completamente à nascença, felizmente. Porque fui muito bem recebido, como se fosse a minha casa. Depois outros amigos surgiram.
 
Foi o tempo dos famosos “Quatro Vintes”. Era só um grupo de amigos, ou ia para além disso – alguma tentativa de manifesto estético?
Não, manifesto estético nunca foi. Foi sempre quatro artistas que resolveram juntar-se como grupo, sobretudo, pela convicção de que a união faz a força. E até do ponto de vista da imprensa desse tempo, que não falava de uma pessoa só. Mas quando aparecemos como grupo, essas portas abriram-se completamente. Quer no Porto, quer mesmo em Lisboa, quiseram saber o que estava a acontecer connosco. No fundo, a nossa ideia era mesmo só essa – agitar as águas nessa área. Mas nunca tivemos uma estética comum. De maneira nenhuma. Era um grupo com quatro individualidades diferentes.
 
Expuseram no Porto, em Lisboa e chegaram também a Paris.
Sim. Tivemos uma boa exposição em Paris, creio que em 1970, numa pequena galeria chamada Jacques Desbrières, no Bairro Latino. Foi a galeria possível, na altura. A exposição ainda foi organizada com a parceria da Galeria Alvarez e com o Jaime Isidoro, no Porto. Depois fizemos uma exposição na Alvarez e a seguir – essa sim, uma grande exposição – outra na SNBA [Sociedade Nacional de Belas Artes], em Lisboa.
 
Depois, cada um seguiu o seu caminho...
 
Sim. Não houve mais interesse em continuarmos juntos, nem fazia sentido mantermo-nos assim. Como nos juntámos, naturalmente nos afastámos.

É normalmente visto como um pintor de paisagens, e de paisagens do Alentejo. A crítica Laura Castro referiu-se-lhe uma vez como um pintor de paisagens, mas onde se nota o “prazer do atelier”.
 Também o José Saramago coincide com isso, num texto que escreveu sobre mim, a que deu o título “Inventor de céus e planícies”. A paisagem que eu pinto não existe, de facto. Tem a ver com o conhecimento que tenho do Alentejo.
 
E é sempre o Alentejo que pinta.
Sim. E, por vezes, Matosinhos ou o mar... Mas é principalmente a paisagem do Alentejo. Isso vem desse conhecimento profundo que eu tenho dessa paisagem, desde os meus primeiros tempos. Mas é a paisagem profunda: a terra, as cores dos campos, o nascer das searas, as mudanças da cor consoante as horas do dia e as estações do ano, que depois procuro transmitir através da pintura. Mesmo quando ela se torna um pouco mais figurativa, quando a gente reconhece uma árvore, ou as árvores de uma paisagem, não são árvores que existem. No fundo, são sempre as transformações pelo conhecimento que tenho dela.
 
Mantém uma relação forte com o Alentejo. Tem lá casa?
A casa onde nasci é a que tenho ainda hoje em Estremoz. Volto lá sempre que posso. Aliás, quando tenho de fazer uma exposição de pintura, por exemplo, tenho por hábito recolher-me e trabalhar lá. Tenho lá um atelier que não é tão grande como este, mas é melhor, do ponto de vista da luz. Lá não preciso de luz artificial, tenho uma luz natural espantosa, num atelier que fiz de raiz. Dá-me um prazer muito grande quando lá trabalho.
 
Continua a sentir-se mais alentejano do que portuense (ou matosinhense)?
Sou um alentejano de raiz, tenho um amor àquela terra muito especial. Quer à paisagem, quer às pessoas de lá. Isso é que nos forma, e nós não lhe podemos fugir. Gosto muito do Porto e de Matosinhos, mas quando se fala em gostar mais, é o Alentejo.
 
Oitenta anos pode ser também uma idade de reflexão sobre a vida e sobre a carreira. Sente-se recompensado com o que criou até agora, e com a recepção à sua obra? Acha-a suficientemente valorizada?
Isso é uma coisa difícil de explicar, tem a ver com várias variantes. Fazer pintura, para mim, é uma razão de vida importante. É isso que, sobretudo, me preocupa. Obviamente, quando fazemos qualquer coisa não o fazemos só para nós. Fazemo-lo também para outros. E é importante que a gente veja do lado de lá alguém que está a apreciar aquilo que vamos fazendo, que manifeste uma empatia com o nosso trabalho. Isso abrange toda a gente – o público anónimo, que vai às galerias e que gosta de pintura, mas abrange também a crítica, os intelectuais de outros ramos, sobretudo da escrita, que no fundo percorrem percursos paralelos a estes através das palavras. É importante sentirmos que há alguma vibração nas outras pessoas a partir daquilo que vamos fazendo.

Tem sentido essa vibração?
Tenho sentido isso todos os dias, felizmente, e ao longo do tempo. Não me posso queixar. E isso dá-me alguma tranquilidade. A ideia de que se está a trabalhar para alguma coisa, que aquilo que vamos fazendo é importante. Mas também não embandeiro em arco. É uma coisa natural.

Como vê as novas gerações das artes, vivendo nós um tempo em que a própria definição de arte é muito mais aberta, joga com muitas mais possibilidades, através das linguagens abertas pelas novas tecnologias?
Acompanho, obviamente, e faço questão de o fazer. Mas, por vezes, acontece que com essa abertura aparece de tudo. Há pesquisas que são importantíssimas e interessantíssimas, e aparece muita coisa que é mais ligeira, superficial, e portanto menos duradoira no tempo. As coisas, como aparecem desaparecem rapidamente. Encontrar um fio condutor que consiga manter-se ao longo do tempo com essas várias correntes que vão aparecendo ao longo dos tempos é muito difícil.
 
Quer citar alguns nomes das novas gerações, alguns percursos, que lhe interessem particularmente?
Há muitos, e estar a citar alguns não me parece importante.
 
O que está a fazer actualmente?
Estou a preparar uma exposição que irei fazer eventualmente em Paris, no próximo ano – tive um desafio nesse sentido. Estou a começar a trabalhar num núcleo de coisas com esse fim.
 
Novamente paisagens…
Paisagens, sempre. Ou alguma coisa que tenha a ver com isso.

Sugerir correcção
Comentar