Aquilo que nos deixa adormecer a cada noite

1. Animais: sento-me em frente ao mar de Caxias e logo o cão da mesa ao lado vem agitar a cauda, investigar-me. A dona diz, Mel, deixa a senhora, mas eu faço festas ao Mel e passamos bem. Converti-me aos cães, tudo é possível. Isso aconteceu no Rio de Janeiro, com a Bela, com a Preta, as duas cadelas que já moravam no jardim onde aluguei parte de uma casa. E nunca mais deixou de acontecer, continuou nos dois cães que já moravam no quintal onde aluguei parte de uma casa em Montemor-o-Novo até ao fim de Outubro. Agora cruzo-me com os cães na rua como se também eu estivesse dentro daquele segredo que liga as pessoas aos animais.

2. (Sem esquecer o segredo que liga as pessoas às pessoas. É possível estar vivo sem outras pessoas? É possível estar vivo sem amar? Porque são precisos pelo menos dois, ainda que o amor seja unívoco. E para quem deixou de amar univocamente, como viver acreditando que nunca mais amará? Excluindo quem se entrega a deuses, é possível viver achando que não se amará mais? E se sim, então para quê?)

3. Cuidar dos vivos. Por exemplo, dos amigos. Por exemplo, das casas. A semana passada falei de Gaza, hoje podia falar dos Açores. Porque tenho um livro de fotografias dos Açores na escada do meu quarto e porque tenho dentro do meu mail um texto que a micaelense Renata Correia Botelho me enviou há (muitas) semanas e eu ainda não li. Não devia fazer mais nada antes de ler esse texto. Portanto, vou interromper aqui a crónica e ler este texto, que sei que tem que ver com a Achadinha, um lugar que a Renata me mostrou.

4. Sim, o texto começa na Achadinha, São Miguel, Açores, e é sobre animais; “cães, gatos, cavalos, burros, passarinhos de toda a espécie, tartarugas, grilos, caracóis, lesmas, borboletas, bichinhos de conta”; “a espantosa grandeza” “com que passeiam sobre o inferno”; gostar tanto deles que “talvez isso seja aquilo que ainda [nos] deixa adormecer em cada noite”. Diz a Renata: “Aos animais devemos essa luz solitária, quase música, quase silêncio, a que chamamos deus. Não o deus da Bíblia, que não sei onde repousa, mas aquele que cuida da alvorada. Porque eles o conhecem, porque com ele privam quando a primeira luz desponta.” Este texto saiu em Maio, no número cinco de uma revista chamada Cão Celeste.

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"Diogenes", pintura de Jean-Léon Gérôme, 1860 (Walters Art Museum)

5. O nome da Cão Celeste (dirigida pelos poetas Manuel de Freitas e Inês Dias, com grafismo de Luís Henriques) é um tributo a Diógenes, o Cínico, filósofo nascido 412 anos antes de Cristo, sendo que cínico é uma palavra que vem da palavra cão. As lendas que chegaram até nós asseguram que Diógenes vivia como um mendigo, procurando com uma lanterna um homem verdadeiro no meio de um mundo corrupto, tentando acima de tudo manter-se tão livre que nada esperassse nem precisasse de ninguém. Uma das lendas que sobrevive (por exemplo na enciclopédia romana online no site da Universidade de Chicago) diz que uma vez Diógenes estava a apanhar sol quando apareceu Alexandre, o Grande, que lhe terá perguntado o que podia fazer por ele. Soberano, Diógenes respondeu, não me tires o sol. Alexandre terá passado a dizer que se não fosse Alexandre queria ser Diógenes. Diógenes acreditava ser um cidadão do cosmos, não de um estado, e vivia sem nada, conta-se que dentro de um barril. O cosmos era o seu barril, num sentido amplo. Eis o cão celeste.

6. O livro que tenho na escada do meu quarto e é a outra razão para pensar nos Açores foi fotografado e auto-editado pela terceirense Sandra Rocha. Chama-se Anticyclone. Vou interromper para o ver em papel, depois de o ter visto antes de haver livro, em computador.

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Uma das fotografias do livro "Anticyclone", de Sandra Rocha Cortesia Sandra rocha

7. Não há cães no Anticyclone. Mas há bichos: um tigre de peluche, um pássaro-móbil, patos de verdade, um bambi contorcionista. Isto tudo acontece na ilha Terceira, onde a Sandra cresceu antes de ir pelo mundo (agora mora em Paris). Este livro é uma volta a casa, irmã, primas, família, plantas, o mar, o mar. Aquilo que a deixa adormecer a cada noite.

8. Fomos juntas a Torres Vedras ver a exposição do Pedro Letria sobre Gaza de que falei há uma semana (já terminou, mas estou a falar dela outra vez a ver se brota um cogumelo, e ela prossegue algures). Na semana passada, pensei que ia citar a frase do Pedro sobre cães em Gaza. Ele escreve na exposição: não vi um só cão em Gaza. Seria um cão preso, um cão em Gaza, ainda que celeste. Um cão celeste preso. 

9. Sempre tive tão timorata relação com animais que uma vez em São Jorge, Açores, desisti de descer uma fajã porque havia vacas no caminho. Receei que me abalroassem, entre um lado e outro do abismo. Eu achava que ia este ano aos Açores, mas já não vou a tempo. Em 2015, irei aos Açores e passarei no meio das vacas. Quando se perde um medo, isso é irreversível, como perder o medo de dormir sozinha numa grande casa antiga. É onde estou acampada, numa casa que um Croft construiu em 1893, num quarto com uma escada em frente ao mar, onde, quando acordo muito cedo, começo por ler uma daquelas crónicas que desde há meses Frederico Lourenço “posta” no Facebook e me fazem acreditar nos homens honestos que Diógenes procurava, com pormenores que um helenista como o Frederico poderia acrescentar longamente aqui e eu não saberia nem encontrar numa enciclopédia online. Há-de ser um grande livro, esse que ele vier a fazer, espécie de autobiografia em crónica. Será a soberania dos pré-estóicos sobre a grande praça do Facebook, que aliás tem a cara de cada um. No Facebook da Renata, por exemplo, estamos sempre rodeados de animais, como Diógenes dentro do barril, rodeado por cães.

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