Anti-heróis em bolandas

Romance sobre a ironia do destino e da História, por um autor admirado por Borges, Calvino e Greene.

Foto
As personagens de Leo Perutz são típicos anti-heróis modernistas, como o cavaleiro e o ladrão deste romance

Nos começos do século XIII, a Europa Central está em convulsão. A Grande Guerra do Norte opõe Carlos XII, “o rei dos suecos”, à aliança feita por vários senhores da região. O nobre Christian von Tornefeld parte para a Rússia sob os estandartes do seu rei, pelo menos estas são as últimas notícias que correm na família, e dele esta nada mais saberá a não ser alguns rumores pouco credíveis de homens que dizem tê-lo visto na frente de batalha. Mas os leitores de O Cavaleiro Sueco conhecerão a sua “verdadeira” história, que por um acaso do destino não é apenas a do nobre sueco, entretanto um enfatuado desertor do exército, mas também a de um vagabundo e ladrão, antigo moço de lavoura na Pomerânia, e agora conhecido por Cata-Galuchos; os dois homens encontram-se no palheiro de um lavrador numa gélida manhã de Inverno, num dos primeiros dias de 1701, e tornam-se amigos; depois seguem a estrada que os levaria, através de uma paisagem coberta de neve, de Oppelen, na Silésia, até à Polónia — não fosse o destino ter reservados para eles outros inesperados e aventurosos propósitos.

Leo Perutz (1882-1957) nasceu em Praga, então parte do Império Austro-Húngaro, e viveu parte da sua vida adulta em Viena. Oriundo de uma família judia não religiosa, viu-se obrigado, depois de ter sido preso por uns tempos, a deixar a Áustria, em 1938, para a Palestina, onde viveu até à década de 1950. Matemático de formação, trabalhou em Trieste para uma companhia de seguros, a Assicurazioni Generali, curiosamente ao mesmo tempo que também Franz Kafka trabalhava para a mesma empresa, mas em Praga. Muitos anos depois, Borges haveria de o apelidar de “Kafka aventuroso”, e o crítico alemão Friedrich Torberg caracterizaria o seu estilo literário como “o possível resultado de uma pequena infidelidade de Kafka e Agatha Christie”. Alguns dos 11 livros escritos por Leo Perutz são romances históricos (como é o caso de O Cavaleiro Sueco), mas que, para além do cenário e dos factos de outros tempos, incorporam também uma forte componente de fantástico, sobretudo do folclore da Europa Central, das suas lendas de fantasmas, de almas penadas, e histórias de proveito e exemplo. “Os camponeses sussurravam uns aos ouvidos dos outros que o moleiro morto saía do seu sepulcro uma vez por ano e punha o seu moinho em marcha por uma noite para poder pagar ao bispo um centavo da sua dívida.” E mais adiante, integrando o facto perfeitamente no decorrer da acção, e tornando-o essencial para o seu desenvolvimento: “Um homem que tinha uma cara que parecia cabedal espanhol, pálida, amarelada, enrugada e cheia de pregas [...], e como estava ali sentado em silêncio com os seus dentes descobertos e as suas trombas tortas, o medo apoderou-se de ambos, e o ladrão percebeu que aquele era o moleiro morto que tinha vindo do Purgatório para ver como estavam as coisas no seu moinho.”

Influenciados por autores como E.T.A. Hoffmann e Arthur Schnitzler, os romances de Perutz, atípicos na literatura da Mitteleuropa, sempre escritos numa linguagem sóbria e polida, e com uma estrutura meticulosa, não deixam de fazer notar a ironia de muitos destinos e da História. As suas personagens, como a do cavaleiro e a do ladrão, são típicos anti-heróis modernistas. De tal maneira que, cansados e para fugirem a um destino que os condenaria ao patíbulo ou aos trabalhos forçados nas galés, fazem um pacto com o tal moleiro-fantasma chegado do imaginário popular: trocam as respectivas identidades e o ladrão transforma-se no nobre cavaleiro sueco, que, agora já sem nome e sem passado, irá trabalhar pesadamente nas forjas do bispo. Mas isto só até que os seus novos destinos se voltem a cruzar.

Para além da ironia expressa em algumas situações, aliada ao evidente divertimento na escrita, há em Leo Perutz (que teve não apenas a admiração de Borges, mas também a de Calvino e a de Graham Greene, entre outros), uma evidente crítica social e histórica. O olhar do fidalgo sueco sobre o mundo é quase sempre irónico, e o do ladrão transborda de causticidade: “Os reis haviam sido postos na Terra pelo diabo para asfixiarem e espezinharem o homem comum.”

Sugerir correcção
Comentar