Anohni: uma nova identidade sonora e cénica para a voz de sempre

Um espectáculo de contornos singulares, algures entre a performance, a instalação de arte e um convencional concerto. Foi assim no Coliseu de Lisboa esta quarta.

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Miguel Manso
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Já se sabia que não iria ser um espectáculo de contornos muito fáceis. Antony Hegard mudou recentemente de identidade – agora é Anohni –, o que provoca sempre alguma confusão inicial em quem se habituou a soletrar o nome Antony and the Johnsons.

E para mais mudou também de identidade sonora: em vez da envolvência sonora exposta num neopop música-de-câmara, temos agora uma sonoridade electrónica intricada e retorcida, que suporta letras que abordam questões políticas, ambientais, sociais, económicas ou de género, assuntos que acabam por estar interligados pela mesma crise sentida nos últimos tempos.

Resultado: um Coliseu dos Recreios em Lisboa longe de estar cheio, depois de ter actuado na véspera no do Porto. Terá sido eventualmente negativo para quem organizou o espectáculo, mas para o espectador nem por isso, porque teve oportunidade de assistir a um excelente espectáculo, num ambiente sem distracções, o que vai rareando. Não pareceu que na assistência existissem muitas pessoas levadas ao engano. Sabiam ao que iam, um espectáculo de contornos singulares, algures entre a performance, a instalação de arte e um convencional concerto.

Nada que não tivéssemos já visto com outros nomes que trespassam fronteiras – de Laurie Anderson a Björk – e que em Anohni acaba por resultar natural, ou ela não se deslocasse desde sempre entre tangentes artísticas (burlesco, dança, butô, instalação de arte, cinema e canção pop). Dir-se-ia que no novo álbum apenas assumiu aquilo que se vislumbrava já no seu passado recente: uma forte vontade de se questionar a si própria, e nesse movimento também o mundo em redor, através de um posicionamento artístico que é também cívico e político.

E foi isso que realmente aconteceu num espectáculo totalmente à volta do novo e magnífico álbum Hopelessness, onde ela contou com a colaboração na criação sonora de Hudson Mohawke e Oneohtrix Point Never. Este último, ao lado de Christopher Elms, foi mesmo um dos dois músicos que a acompanharam em palco.

Em anteriores espectáculos em Portugal, onde tem sido presença regular na última dúzia de anos, era frequente falar imenso nos interlúdios das canções das mais diversas questões. Naquele mesmo palco vimo-la expor posições políticas ou ambientalistas, perante uma assistência rendida, que mal a conseguia ver, semioculta pela contraluz que nunca a desvendava por completo. Agora o conteúdo político está nas canções. Não existe falatório, nem cumprimentos, apenas a focagem no que se passa em palco.

É um espectáculo onde se sente muito o dedo de Daniel Lopatin (Oneohtrix Point Never), uma das figuras mais estimulantes a surgir nos últimos anos no vasto universo das electrónicas exploratórias. Há qualquer coisa de escultórico na nova música de Anohni e em grande parte a ele se deve. Algo que começa a ser visível logo no início quando o espectáculo arranca com um vídeo onde vislumbramos a ex-modelo Naomi Campbell dançando entre escombros, com um som abstracto de camadas electrónicas que se vão sobrepondo, numa panóplia repetitiva de 20 minutos.

Poderíamos estar numa galeria de arte, mas ali estamos no Coliseu, para uma experiência imersiva de sons e imagens. Depois entram os dois músicos em cena, entregues a sintetizadores ou programações, enquanto na tela gigante irão desfilar ao longo de hora e meia expressões faciais de mulheres das mais diversas origens e idades. Em entrevista, Anohni confessava-nos que havia sido ela a filmar e a editar os retratos, combinando-os para representarem uma espécie de oráculo feminino. Faz sentido, porque o filme, se lhe quisermos chamar assim, tem um papel primordial, com imagens hiper-realistas que nos aproximam daquelas figuras vulneráveis, como se Anohni nos quisesse devolver a transparência das emoções.

Depois do tema-título Hopelessness, surge finalmente Anohni para cantar 4 degrees, envolvida por longas vestes brancas e de rosto oculto por um véu negro, que nunca deixará. Durante todo o espectáculo irá ser assim: as canções vão desfilando, sem grandes alterações de fundo em relação ao disco, mas mais intensas e carregadas, numa mistura de sons que tanto podem ser agressivos e desconfortáveis, como contemplar alguma harmonia e melodia.

O disco foi tocado na íntegra, com o extra de cinco temas que não estão contidos no álbum, mas reveladores da mesma abordagem. O que não muda é a singular voz, sempre expressiva, num espectáculo onde Anohni apenas desvenda o seu rosto quando surge na tela em I don’t love you anymore. Mas não é preciso vê-la para sentir a dor, a raiva, o amor e o desamor que as suas canções transportam. E isso é que é verdadeiramente importante.

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