Andando em círculos, à volta de Lisboa

Quando as cidades perderam as muralhas e se tornaram muito mais vastas, terão também perdido o centro? Pedro Campos Costa e Eduardo Costa Pinto partiram desta interrogação para um livro, que se prolonga em exposições e debates, no qual Lisboa ganha sete círculos. Percorrendo-os, aonde chegaremos?

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Sete Círculos propõe uma releitura de Lisboa a partir de sete círculos (mais um, o número zero, que não aparece neste mapa: a Muralha Fernandina). O sétimo é a bacia hidrográfica do Tejo MAPA: MARIANA SOARES
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1. A antiga Estrada da Circunvalação. Foto: Prazeres - 38º42’50.53”N/9º10’27.01”W
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2. Av. de Ceuta, João XXI e o Grande Aterro. Foto: Av. Infante Santo - 38º42’8.58”N/9º9´59.95”W
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3. O Eixo Norte-Sul e a Margem Sul. Foto: Seixal - 38º38’42.04”N/9º5’28.50”W
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4. A Segunda Circular. Foto: Segunda Circular - 38º45’40.50”N/9º9’0.12”W
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5. A CRIL — Circular Regional Interior de Lisboa. Foto: Vale da Resina, Alcochete - 38º43’28.93”N/8º56’19.52”W
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6. A CREL — Circular Regional Exterior de Lisboa. Foto: Vala do Carregado - 39º0’47.48”N/8º56’11.42”W
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7. A Bacia Hidrográfica do Rio Tejo. Foto: Vila Seca, Torres Vedras - 39º7’13.86”N/9º9’0.13”W

Uma cidade tem um centro? Lisboa tem um centro? E nós, habitantes das cidades, precisamos de um centro? Ou acabamos a andar às voltas ao centro, como se forças opostas nos puxassem para ele e depois nos atirassem novamente para a periferia?

Há sete anos, os arquitectos Pedro Campos Costa e Nuno Louro percorreram Portugal de Norte a Sul ao longo de duas linhas, uma pelo litoral e outra pelo interior. Foi uma forma de pensar o território que resultou no livro Duas Linhas. Desta vez, Pedro Campos Costa desafiou um arquitecto paisagista, Eduardo Costa Pinto, e os dois andaram às voltas à procura de um centro. Ou melhor, de uma ideia de centro que, mais uma vez, nos ponha a reflectir.

O livro está pronto, chama-se Sete Círculos, é, como o anterior, um registo fotográfico do território, e inclui, para além de textos dos dois autores principais (que também fizeram grande parte das fotografias), outros de José Sarmento de Matos (olissipógrafo), Gonçalo Byrne (arquitecto), João Nunes (paisagista), Gonçalo M. Tavares (escritor), Javier Arpa Fernandez (arquitecto), Filippo Minelli (artista), Mário Alves (engenheiro civil), Olivia Bina (investigadora), Adriana Verissimo Serrão (investigadora), Francesc Muñoz (geógrafo), Michael Sorkin (urbanista), Álvaro Domingues (geógrafo), Mary Bowman (arquitecta) e Eduardo Brito-Henriques (geógrafo). Há ainda dois fotógrafos, Tiago Casanova e Duarte Belo, convidados para percorrer e fotografar dois círculos especiais: o zero e o sétimo.

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Imagem da Rua Nova do Carvalho, junto ao Cais do Sodré, captada por Tiago Casanova: este é um dos pontos do círculo zero, que corresponde à antiga Muralha Fernandina

E assim, a uma Lisboa marcada pela narrativa antiga das sete colinas, eles querem impor outra, a dos sete círculos. O número zero é a Cerca Nova ou de D. Fernando, o primeiro é a antiga Estrada da Circunvalação, o segundo percorre as avenidas de Ceuta, Berna, João XXI e o Grande Aterro, o terceiro passa pelo Eixo Norte-Sul mas, de repente, salta para a Margem Sul, o quarto acompanha a Segunda Circular, depois vêm a CRIL, a CREL e, por fim, o círculo que os autores descrevem como “o mais provocatório” porque dá um salto para lá das próprias fronteiras do país: a bacia hidrográfica do Tejo.

“As cidades cresceram rapidamente”, afirma Pedro Campos Costa, “e nós, especialmente na Europa, ficámos muito agarrados a uma imagem que é a do Bom Governo de Lorenzetti [A Alegoria do Bom e do Mau Governo, de Ambrogio Lorenzetti, fresco na Câmara de Siena, Itália]: a cidade medieval no interior das muralhas e o mundo rural no exterior. Temos aquela imagem como uma coisa positiva. Entendemos que as muralhas nasceram para nos proteger, e no entanto elas acabaram por desaparecer. A partir do século XX há uma série de autores que falam disto, quase como uma psicanálise: as cidades já não são os centros mas continuamos a regressar ao tema. Se calhar vivemos demasiado tempo dentro da muralha…”.

Sendo os dois autores lisboetas – Pedro da Margem Norte e Eduardo da Margem Sul –, olhar para Lisboa é sempre como olharem para si próprios, "e fazer auto-análise é um exercício difícil”. Por isso, como acontecia com Duas Linhas, também Sete Círculos parte de um método teoricamente objectivo: definidos os círculos (com critérios inteiramente pessoais, dos autores, sendo alguns traçados mais óbvios do que outros), começam a percorrê-los, parando sempre a distâncias iguais em radiais que partem de um centro (o Marquês de Pombal). E a cada paragem tiram uma fotografia. O que esperam é que, no final, esse conjunto de fotografias lhes devolva uma imagem do que é a cidade.

“O método só é mais matemático na definição das radiais, que distam 30º umas das outras, como se fossem anéis de crescimento do tronco de uma árvore”, explica Eduardo. “Mas claro que a objectividade vai-se diluindo." Pedro acredita que o facto de um ser arquitecto e o outro paisagista percebe-se no olhar que lançam, através da objectiva, sobre o território. “Mas estas fotos acabam por nos influenciar pela experiência. E acho que há uma homogeneidade em cada conjunto de fotografias que confere coerência a cada círculo.”

A este olhar fotográfico é acrescentada mais uma camada de interpretação, porque os autores convidaram outros a escreverem as legendas para as fotos que tiraram. Pedro confessa que quando escolheram os co-autores do livro imaginaram que iriam ter textos muito diferentes, mas foram surpreendidos por haver mais em comum entre eles do que tinham pensado. E uma das coisas em comum é a “vontade de religar o território”.

As fotografias mostram como a ideia de limite é fluida. Se esquecermos a já desaparecida muralha, os limites de Lisboa começam a ser definidos por vias rápidas cada vez mais alargadas, que permitem circular, a grande velocidade e sempre de automóvel, contornando a cidade. O irónico é que, com o tempo, essas vias rápidas que nos tornavam velozes vão-se enchendo de carros e entupindo, acabando por se tornar o local onde os automóveis, em vez de andarem, param em desesperantes filas.

“Estes círculos que propomos são também uma provocação ao mundo da máquina, porque a cidade hoje é feita à escala do automóvel. A Segunda Circular é um modelo pensado para o automóvel”, diz Eduardo. No texto que fez para o livro, Mário Alves, engenheiro civil especialista em transportes, também fala sobre isso: “Numa altura em que as cidades ansiavam ser máquinas eficientes, as circulares estiveram na moda […]. Projectadas para atingir velocidades sonhadas, eram necessariamente corredores amplos, previsíveis, isolados."

Com elas vieram as “paisagens virtuais”, que atraíram “edifícios-anúncio”. E o mais dramático: “Desejamos velocidade mas fomos para mais longe. Um pendular que demore duas horas por dia a chegar ao emprego […] trabalha meio ano para pagar as suas deslocações. Dito de outro modo, passa a manhã a trabalhar para chegar ao emprego de automóvel.” Assim, os círculos criados para nos libertar “tornaram-se locais de aprisionamento”. E, perante isso, “caminhar é um acto político”.

Neste livro, que cruza várias leituras, podemos estar a pensar nesta ideia e, de repente, deparamo-nos com uma legenda que Gonçalo M. Tavares fez para uma imagem na zona da Quinta do Cabrinha, em Lisboa: “Duas vias para automóveis a alturas bem distintas. O avião começou assim. Alguém levantou ainda mais o pescoço. Um veículo com motor numa estrada a muitos metros de altura a quem experimentaram tirar a estrada. A crença de que a tecnologia pode fazer do ar, caminho.”

Mudar Lisboa, mudar o mundo

Reduzir a velocidade, parar, olhar – são tudo formas de nos religarmos ao território. Tal como redescobrir a Natureza que está por trás, ou por baixo, da paisagem. Eduardo Brito-Henriques recorda-o na legenda de uma das fotos (de Balsa del Vallejo, Guadalajara, no sétimo círculo): “Perdeu-se a noção de como a cidade é fruto de uma situação e está presa ao ‘em-torno’ por feixes de tubos, fios, valas e caminhos por onde circulam os fluxos de matéria e energia que sustêm o metabolismo urbano. De onde vem a água que corre na minha torneira? Em que serra está o buraco de que se fez o cimento da minha casa? Para onde vão as espinhas do peixe que acabo de comer? Até onde chegam os tentáculos da cidade que habito e, com eles, os limites do meu corpo e de mim mesmo?”

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Pedro Campos Costa, à esquerda na foto, e Eduardo Costa Pinto, os autores de Sete Círculos FOTO: Miguel Manso

“É sempre bom repetir”, escreve José Sarmento de Matos no seu texto, “que, no caso de Lisboa, é a Geografia que esquematiza os trilhos onde a História acontece”. E na geografia de Lisboa está o Tejo. Nada de novo, obviamente. Mas mesmo assim muitas vezes esquecido.

A nossa perspectiva da cidade altera-se profundamente, por exemplo, por causa dos meios de transporte. Chegar a Lisboa por mar criava uma relação com o rio que não existe quando se chega de avião. “As cidades estão ligadas aos recursos”, afirma Eduardo. “A energia barata deixou-nos alineados dos recursos. Todo o modelo contemporâneo de cidade nos permite facilmente desligar dessa realidade.” Mas ela não desaparece. “Pequim é um bom exemplo: a desflorestação criou um problema gravíssimo de entrada de areias do deserto pela cidade dentro, o que os está agora a obrigar a construir uma nova muralha da China verde.”

Um dos objectivos assumidos deste projecto – que, para além do livro, passa por exposições, debates públicos e até encenações teatrais, e deverá culminar numa conferência internacional em Setembro – é mostrar que “Lisboa é o estuário”. Daí a proposta do sétimo círculo. “Temos pouquíssimo tráfego marítimo, o que não faz sentido”, defende Pedro. “Temos um porto incrível, facilmente navegável, podemos usá-lo de forma mais intensa.”

Mas até onde os autores estão dispostos a ir nesta intervenção na cidade? “Não podemos fazer propostas concretas”, responde Pedro. “As cidades são feitas por pessoas e são as pessoas que transformam as cidades. Este livro, tal como o Duas Linhas, tem o objectivo de provocar porque não temos a força nem a capacidade de dizer que a solução é esta. Eu uso este livro para conhecer outras pessoas, outras ideias.”

Eduardo tem um postura diferente: “Eu tenho a ambição de mudar o mundo com os sete círculos”, diz, sorrindo. “As sete colinas de Lisboa não existem enquanto tal mas não deixam de ser uma chave de leitura da cidade muito importante. Com os sete círculos tentamos criar uma nova narrativa. E as narrativas ajudam a mudar o mundo.”

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