Amor à filosofia, amor ao mundo

Coisa rara nas livrarias portuguesa, tradução de um livro do Karl Jaspers, filósofo da responsabilidade, da prudência e da liberdade dos homens.

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Começou a sua carreira na psiquiatria, que trocou pela filosofia, depois de conhecer Max Weber e, mais tarde, Martin Heidegger MP/Leemage

Reunindo uma série de palestras feitas na televisão alemã em meados dos anos 1960, Pequena Escola do Pensamento Filosófico lembra aos leitores portugueses a existência de um nome de certo modo negligenciado pela filosofia contemporânea: Karl Jaspers. De origem alemã (Oldenburg, 1883 - Basileia, 1969), este pensador começou a sua carreira na psiquiatria que viria a trocar pela filosofia, depois de conhecer Max Weber e, mais tarde, Martin Heidegger, de quem foi amigo e do qual se afastaria durante o regime de Hitler. Proibido de leccionar desde 1937, viria a recuperar o prestígio público no pós-guerra, com a sua contribuição intelectual e cívica para a formação política da então República Federal da Alemanha. Neste período, o seu trabalho filosófico não terá conhecido, contudo, a mesma atenção que o de outros autores, apesar do decisivo e publicitado reencontro com Hannah Arendt, ex-aluna, com quem viria a desenvolver uma intensa correspondência e cuja influência se pressente em alguns dos capítulos deste livro.

Admitindo que na história da filosofia, Jaspers (associado com Heidegger ao Existencialismo), não alcançou a preponderância que merecia, os debates filosóficos em que participou, que recusou deixar extintos, conferem-lhe uma relevância viva e sábia. Em Pequena Escola do Pensamento Filosófico propõe-se falar do Homem, do Cosmos, da esfera pública, do conhecimento, entre outros assuntos, numa declaração de amor à filosofia “enquanto maneira de pensar que, como disposição global, passa a fazer parte da natureza de uma pessoa”. Sem trair o significado de uma palestra (virada para o real), Jaspers entende a sua tarefa como modesta “porque dirigida para coisas elevadas”.

Sendo “modestos” (há uma clara dimensão pedagógica) os seus textos não são fáceis. Nem podiam sê-lo, desenhado o fim para que se encaminham. Estimular o pensamento do ouvinte, aguardando que ele venha também a participar com perguntas e questões. Karl Jaspers, que vê no filosofar uma experiência possível a todos, é um pensador que aprecia a prudência, a temperança como guias intelectuais. Na secção intitulada “Cosmos”, entusiasma-se com os feitos da ciência, defende a investigação dos objectos e dos fenómenos e inquieta-se com os efeitos imprevistos do desencantamento do mundo. Fala de uma “desgraça da vida humana [que] começa quando aquilo que é cientificamente sabido é tido como o próprio Ser, e quando tudo quanto não seja suspectível de ser sabido cientificamente é considerado não existente”. A esses limites (do conhecimento da matéria, da vida, do mundo), argumenta, só a filosofia pode responder.

O cosmos ainda não é território do nosso domínio, mas o mundo terrestre, “o nosso mundo humano que é afinal abrangente e grande, devido ao conteúdo da nossa história”. Para o filósofo a história do Homem não é a história biológica, mas a das acções, das tradições e recordações conscientes, a história em que estamos entre nós próprios. Que pode ser evocada pelos mitos e as lendas e que a ciência procura conhecer, contra o acaso e os mistérios que ainda rodeiam a origem do próprio homem. Diante de tais enigmas, Jaspers volta a lembrar a importância da filosofia. Observando a grandeza e vileza do ser humano, assim como o esplendor das suas obras, ela “deve consciencializar-nos que o futuro está em aberto, assim como os limites de qualquer configuração das coisas humanas, por mais grandiosa que seja, e, deste modo, incrementar a responsabilidade em cada nova situação concreta”.

Porque, como expõe mais à frente, os homens são existência viva e consciência, e são também “espírito, que cria imagens e formas”. E estas dimensões lutam entre si, interpenetram-se. Mas isso só se acontecerá se o Homem estiver em comunidade, com os outros, não como mero membro da Natureza ou ser solitário. A sua essência está em movimento, em constante mudança. “[Ele] Nasce de cada vez, sujeito a novas condições. Um recém-nascido não está unicamente confinado a trajectórias pré-estabelecidas, é antes um novo começo” (adivinha-se aqui a influência dos conceitos de natalidade e pluralidade que Hannah Arendt explora em A Condição Humana). Consciente dessa condição, Jaspers não deixa de, citando Dante, alertar para os perigos que cada acção, entendida como momento de uma progressão ilimitada no mundo, acarreta: dela pode resultar “[um] naufrágio devido à petulância do querer saber e do poder”, que se tornaria realidade, com a ameaça da auto-destruição da humanidade (Chernobyl e Fukushima ainda distantes e tão próximas).

Face à incerteza, restará aos homens a capacidade da reflexão, da coragem e da esperança (concebidos como inseparáveis) e, acima de tudo, o reconhecimento da dignidade em si e em cada um dos outros. A esfera política pode ser ainda um lugar adequado à manifestação dessas capacidades, pois é feita de homens, e nela a liberdade política ainda permite perguntar-nos para que vivemos e de que modo queremos viver. E o seu fracasso, mais ou menos iminente, não nos deve levar a rejeitá-la, tal como “não pode ser negado o esplendor da Terra, se um dia, ao extinguir-se, voltar a dissolver-se no mar do cosmos como se nunca tivesse existido”.

Filósofo que consagra um valor inegável ao espaço público, à liberdade e à democracia, Jaspers também dedica, com pudor e inteligência, várias páginas ao amor e à morte que merecem ser lidas e relidas. Deixe-se aqui uma passagem a propósito do primeiro tema: “Se uma pessoa estiver plenamente consciente da sua condição humana, então lesa a dignidade humana do parceiro se – quer seja homem ou mulher – o utilizar apenas como instrumento da sua sexualidade”. Esta ideia do amor, agora talvez um pouco desusada, pode ser lida à luz de outra frase, publicada na última palestra: escreve Jaspers que a filosofia ensina a olhar de frente a provável catástrofe. Perturba o mundo, mas, também, não deixa que este considere como inevitável a desgraça, “pois aquilo que virá a acontecer também ainda depende de nós”.

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