Amar, beber e cantar

Já aqui falei do meu fascínio por Alain Resnais, cineasta francês fundamental para a história do cinema e que nos deixou em Março deste ano, com a idade de 91 anos.

Também recordo a minha anterior crónica sobre Corações (2007), onde os movimentos de cada personagem afectam sempre todos os outros, mesmo quando as pessoas não se cruzam; e em que recordava os clássicos de Resnais, como Hiroshima, Meu Amor e O Ano Passado em Marienbad.

Com o risco de cansar os meus leitores, não posso, no entanto, deixar de recomendar o último trabalho de Resnais, tornado público pouco tempo antes da sua morte.

Amar, Beber e Cantar surpreende-nos a cada passo e deixa-nos com permanentes interrogações sobre a verdade, o sentido da vida, o envelhecimento e a morte. É, mais uma vez, um grande filme e é bom que Resnais tenha terminado assim a sua carreira de mais de 70 anos.

O filme conduz-nos a um grupo de actores amadores que ensaia uma peça, mas depressa percebemos que o teatro em curso é apenas um pretexto para nos contar a vida das personagens, cujas estórias sentimentais se entrecruzam a cada instante. A certa altura, não sabemos o que é real e o que é ficção, num jogo sem fim em que Resnais é mestre.

George, um dos amigos, recebe a notícia de que tem uma doença fatal e que lhe restam apenas seis meses de vida. Este facto altera a vida de todos e passa a ser o motivo principal das sucessivas motivações e comportamentos dos outros. George, que nunca chegamos a visualizar (num truque de Resnais para estimular a nossa imaginação), exerce um fascínio sobre todas as mulheres, que o disputam até ao fim, perante o embaraço dos homens a quem estão ligadas oficialmente.

O realizador estabelece um permanente paralelo entre o palco e a vida real. Não entramos no interior das casas porque tudo se passa cá fora, como se os protagonistas estivessem a “representar” a sua intimidade. As paisagens bucólicas alternam com cenários e animação teatral, numa tentativa permanente de criar uma distanciação. O diálogo, muito vivo e irónico, alterna com monólogos de algumas personagens, que falam sozinhas, em grande plano, diante de um fundo abstracto.

O tempo, um dos temas sempre presentes em Alain Resnais, aparece de novo: na obsessão com os relógios de Colin, nos poucos meses que restam a George, nos atrasos da encenadora e no passado amoroso das mulheres, revelado aos poucos com o desenrolar da acção.

A representação é sublime — com destaque para Sabine Azéma, a viúva de Resnais — porque os actores são dirigidos com mestria e, num filme que parece, à partida, um simples divertimento do realizador para connosco, emergem subtilmente os grandes temas dos casais de meia-idade: o envelhecimento e a proximidade da morte, o declínio da vida sexual, a traição e o ciúme, a perplexidade face ao comportamento dos filhos e a verdade ou a mentira sobre a intimidade.

Resnais constrói, em Amar, Beber e Cantar, uma espécie de “cine-teatro”, em que cinema e teatro se entrecruzam em cada instante para nos levar a uma profunda meditação sobre a vida e o seu sentido.

Só se canta no fim, mas saímos do filme com as imagens na cabeça e a música da nossa própria vida em pano de fundo.     

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