Alicia Keys: como lavar e encher a alma

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Alicia Keys foi recebida por um Pavilhão Atlântico esgotado DR

O espectáculo começa com um vídeo que mostra um grupo gospel entregue a uma prece numa igreja. Não é uma igreja qualquer. É – simboliza – o modesto palco que primeiro testemunhou o talento da "pequena Alicia", como é apresentada pelo pastor, que a lança numa "viagem pelo mundo". Essa viagem trouxe-a a Lisboa pela segunda vez ontem à noite, onde colheu as sementes da boa memória deixada no Rock In Rio em 2004 e plantou outras tantas, com uma actuação que lavou e encheu a alma dos milhares de pessoas que a receberam num Pavilhão Atlântico esgotado.

A quantidade de "tour buses" à porta de serviço antecipa a grande produção que encontramos lá dentro: um palco com dois níveis em altura, todo ele ecrã. Patrice, o autor de "Nile", abre a noite em formato mais modesto, espalhando o seu reggae, numa actuação curta, por uma sala ainda a compor-se. Despede-se com "Soul storm", ciente da popularidade do tema e do quanto se adequa ao que se vai passar a seguir, quando passar o testemunho a Alicia Keys.

À saída da "pequena Alicia" da igreja, no vídeo, segue-se a entrada da "grande Alicia" em palco – grande em graça, classe, carisma, postura, sensualidade, voz. O concerto que se segue é tecnicamente perfeito (a acústica nem parece a do Atlântico, que tanto tem o hábito de trair os seus artistas), vem marcado pela simpatia e entrega de Alicia, é pautado por arranjos ligeiramente diferentes às canções e só peca, aqui e ali, por momentos que quebram a dinâmica geral (mas sem quaisquer traços soporíferos). "O meu nome é Alicia Keys", apresenta-se ela em português correctíssimo (alguém a recomende para aulas de pronúncia a outros artistas). Isto só no caso de "You don’t know my name". Cortina e palco tornam-se vermelhos e estamos num "Moulin rouge" que deixa brilhar as três vozes femininas que a acompanham, qualquer uma com personalidade vocal para ser atirada ao mundo. Por esta altura é evidente que o concerto vai alternar entre momentos de cor(eografias) e outros de maior intimismo em que, ao piano, Alicia vai revelando as páginas do seu diário.

O motivo do concerto é o último álbum, "As I Am". É de lá que vêm momentos como "Prelude to a kiss", balada dedicada às crianças africanas e pretexto para o apelo à participação numa campanha: "Toda a gente precisa de um anjo em alguma altura da sua vida", explica. "E todos o podemos ser o anjo de alguém". Mais uma dedicatória, desta vez a todas as super-mulheres (e aos homens que reconhecem uma quando a vêem): "Superwoman". "I need you", "Sure looks good to me" e "Like you'll never see me again" são outros dos novos temas.

A apresentação de "As I Am" é proporcional à visita aos álbuns anteriores. Para bem da alma dos fãs e do equilíbrio do alinhamento, não podiam ficar de fora temas como "Heartburn", "Butterflyz", "How come you don't call" (o público abafa-a com aplausos, Alicia pára, levanta-se, agradece e, em boa resignação, retoma o ritmo vocal ascendente, para voltar a ser abafada), "A woman's worth" (com um toque de reggae que a aproxima do poder intemporal de "No woman no cry"), "Diary" (um dos momentos mais bonitos da noite – palmas para Jermaine Paul) ou "Karma". "Fallin'", o rastilho de todo o sucesso que aqui se vê, é sabiamente guardado para o final, atiçando o trio de canções que vão rematar a noite. Correram quase duas horas de concerto, a porta fecha-se atrás de Alicia, mas ainda é cedo para o final. O pastor regressa ao ecrã para dar mais um empurrão. Ela regressa para "No one", o badalado single de "As I Am". Agora sim, terminou. Não, ainda não. Só há uma maneira de silenciar o público: voltar, agradecer com comoção o amor dos fãs e dedicar-lhes "If I ain't got you". Amor com amor se paga – a entrega de parte a parte deixa facilmente imaginar o clímax em que o concerto termina.

"Soul sister" de respeito

As luzes acendem-se e fica mais clara a diversidade dos rostos que compõem a multidão. Há uma maioria de mulheres, mas também há pais que trazem crianças e homens que pagam bilhete para vir com os amigos. Não é muito comum ver tamanha concentração de fãs do género masculino no espectáculo de uma cantora desta dimensão. Não sejamos ingénuos ao ponto de negar o "sex appeal" de Alicia, nem redutores ao ponto de atribuir a presença masculina apenas à sua beleza e sensualidade (no concerto de Beyoncé, por exemplo, havia rapazes, mas a maior parte ia acompanhado das respectivas).

Reconhece-se nesta "soul sister" um exemplo de seriedade e profissionalismo que transcende essas e outras matérias. Aparentemente, e ao contrário de outras vedetas, não se vislumbra por ali qualquer tipo de plástico. É uma estrela, mas não tem a atitude de quem está a anos-luz do comum dos mortais. É linda, mas prefere não cair nas imagens esterotipadas da mulher – e porventura gastas –, veiculadas por outros nomes do género. Não é uma diva, apesar de merecer totalmente o título. Apresenta-se como uma rapariga como as outras, que só foi diferente porque acreditou no sonho que tinha quando ainda cantava no coro da igreja de Hell's Kitchen. É esta a sua mensagem.

O resto é respeito. Alicia tem um monte de Grammys em cima da lareira que asseguram o aval da crítica, tem fãs das mais diversas estirpes musicais, tem uma segurança e pulso no que faz que desmente os seus 28 anos e tem a coragem de montar um espectáculo de encher o olho q.b. sem cair na vulgaridade nem recear perder a credibilidade que decorre desta sua aura de autenticidade.

Cenários e coreografias funcionam como ilustração, não como manobra de diversão. É importante que se oiça cada acorde do seu piano – que, juramos, é onde se sente mais feliz –; que se oiça cada curva e contracurva da sua voz certeira, cheia, ligeiramente rouca; que a força da interpretação e das palavras sirvam de inspiração. Terá alguma mulher – ou homem – saído de um concerto de Alicia Keys com garra para fazer das fraquezas força e com vontade de agarrar o mundo? Muitas, sem dúvida. É façanha que tem muito de rara e muito pouco de "pequena".

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