Alek já está aqui

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Alexandre Rendeiro criou Alek Reins (o músico) que se estreia agora com o EP Gemini

Alek Rein, alter-ego de Alexandre Rendeiro, surpreendeu-nos com "Gemini", EP de inspiradíssimo psicadelismo. É o primeiro registo de um videasta, músico e artista plástico de 21 anos. E é prenúncio de algo em grande.

"O Alek Rein é um gajo do campo, da folk, e essa não é a minha vida. A dele é mais bucólica que a minha, e ele é um tipo que anda em aventuras. Eu não. Eu ando aqui na minha seca de vida urbana". A declaração é de Alexandre Rendeiro, 21 anos, licenciado da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Alek Rein, o tipo de quem fala, é o autor de "Gemini", EP de cinco canções, cinco canções de inspiradíssimo psicadelismo folk, ora em movimento encantatório eléctrico-opiáceo, ora eufórico-telúrico (erguem-se timbalões e guitarras acústicas), que nos caiu em cima. Alexandre Rendeiro é Alek Rein. Imaginou-o como projecto artístico, misto de heterónimo à Fernando Pessoa (com Syd Barrett no horizonte) e de alter-ego à Ziggy Stardust (sem fatiota glam). Um músico que Rendeiro lançasse ao mundo para o ver construir-se, canção após canção, concerto a concerto.

Curioso projecto? Certamente que sim, diríamos antes de ouvir as suas canções. Antes. Porque assim que chegamos a "Gemini", o conceito torna-se menos interessante que o que dele frutificou. "Gemini" é, arriscamos dizer, o nascimento de algo em grande.

Depois dele, Alek Rein, ele que grava versões acústicas de "Femme fatale", ele do imaginário fantástico-surreal com Hollywood dentro e que recicla diálogos de "O Padrinho" para cantar a ambígua "I believe in America", será obrigado a continuar. O "gémeo" de Alexandre Rendeiro ainda lhe dará trabalho. 

O lendário já não existe

Alexandre Rendeiro nasceu em New Jersey, em 1988. Regressou a Portugal aos oito anos. Viveu em Faro, chegou a Lisboa. Pelo meio, teve uma epifania quando o pai pôs no auto-rádio do carro "Made In Japan", o histórico álbum ao vivo dos Deep Purple. Ele impressionado com o som distorcido do Hammond de Jon Lord e o pai a brincar: "Ainda tens muito para aprender". E ele fê-lo. Continuou e continuou: os Pink Floyd de Syd Barrett, Crosby, Stills & Nash, David Bowie, Velvet Underground, Bob Dylan, Donovan, Leadbelly.

Mais próximo no tempo, arranjou uma banda, a banda acabou e ele decidiu que não que queria outra - "não queria fazer uma coisa que alguém me pudesse tirar". E então nasce Alek Rein. Voz e guitarra acústica, primeiro. Bateria, baixo e órgão de borbulhar vintage, depois, quando se meteu num estúdio. Nasce "Gemini" e com ele, para nós, uma revelação: ecos do Barrett a solo e o odor a floresta dos Fleet Foxes, os agudos da voz e a ideia de folk adulterada, recusando classicismo, a recordar-nos o sublime Cass McCombs. Esta é a música de Alek Reins, mas não a compreenderíamos sem conhecer o resto.

Alek Reins, como se recordarão, é um projecto do artista Alexandre Rendeiro. E ele quer que tudo se conjugue. Ou seja, não quer ser o músico, por um lado, o videasta por outro, o artista plástico por fim. "Quero que a música, a arte, o vídeo se complementem ao longo da minha vida".

Actualmente em residência na ZDB, trabalha o conceito "O artista enquanto Diabo". Porque passou os tempos de faculdade a ouvir falar de "o artista, a nível criativo, se colocar na posição de Deus, por ter que inventar uma linguagem e um universo seus", e lhe parecer que, mais que Deus, o artista se parecerá com o Diabo. Não é verdade que "o diabo se tornou diabo por aspirar a tomar o lugar de Deus"? Esta ideia é importante - está presente naquilo que é Alek Reins, o músico.

"Golden man", épico sci-fi em forma de canção - uma nave que aterra, um homem que fala do "anarquismo psicadélico, surreal", do seu planeta -, surgirá também num guião que tem preparado, e vagamente inspirado em Castor e Polux, gémeos personagens da mitologia grega. Resumindo, Alexandre Rendeiro criou um universo para Alek Reins e está agora a vê-lo dar os primeiros passos. A separação entre ele, Alexandre e Alek, obrigatoriamente porosa e indefinida - "Gemini", o título do EP de estreia, refere-se a ela -, é ainda importante por outra razão.

Alexandre aprecia a democratização trazida pela era da informação, que "permite ir à internet e, pelo menos, arranhar a superfície do que se passa à nossa volta". Mas sente falta do mistério, da impossibilidade de atingir uma dimensão lendária que surgiu com essa total transparência. "Os Led Zeppelin só se tornaram o que são por omissão, por não irem muito à televisão, por não estarem muito visíveis." Da mesma forma, "a Hollywood clássica de divas e galãs é um conto impossível hoje, quando temos no YouTube as vedetas a vomitar depois de uma festa". Perante isto, Alexandre não sabe ainda onde se colocar. "Sou completamente a favor de toda essa liberdade de informação, que permitiu uma sociedade mais horizontal, mas não consigo abstrair-me [do que se perdeu]". O mesmo na arte: "[Neste momento] o meio está à frente da criação. Se há espaço para fazer, faz-se e enche-se o espaço. Não se faz e depois vê-se onde cabe. Isso causa ambiguidade e um ímpeto sem meditação. Ainda demorará alguns anos até que consigamos equilibrar isso. Mas chegará o momento em que diremos, 'epá, mas o 'ready-made' agora não faz sentido nenhum".

Alek Reins, heterónimo e alter-ego de Alexandre Rendeiro, chega-nos em "Gemini" com corpo completo. Nele, Alexandre projecta, na era da informação, o mistério que já não é possível. Se o abordarem no final do concerto desta noite, ele dirá: "O Alek já não está aqui".

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