Água

Falta água em São Paulo. Muita gente diz que é o verdadeiro início do seco século XXI. Alguns lugares passam dias seguidos sem fornecimento. Já inventaram lavagem automóvel com toalhetes, os toalhetes esgotam em todas as lojas, os banhos de milhões de pessoas são exercícios à míngua. Ninguém brinca com o assunto.

O tempo depois das eleições é uma espécie de cansaço. A euforia da Copa mudou para a fúria da campanha e, agora, para o cansaço da realidade. Toda a gente se queixa do facto cinco vezes ao dia. Espera-se, entretanto, que São Pedro salve a Presidente deste problema, mas é difícil encontrar quem acredite que o Governo tenha uma solução. Uma senhora explicou-me que acumula mais de 70 garrafões na despensa. Não vai deixar de beber. Acha que pode acontecer um êxodo. Outra gente haverá de morrer à sede. Ela vai durar meses até precisar de fugir. Pensa que São Paulo pode virar o maior fantasma do planeta. Um lugar abandonado aos malucos que se vão devorar mutuamente.

São Paulo cresceu na lógica do estilhaço. Depois da ignição, explodiu num ponto e desenvolveu-se na indisciplinada lógica do estilhaço. Não tem geometria. A cidade é um acaso acumulando outro acaso. Os caminhos parecem parasitar-se e predar-se uns aos outros. Assim, qualquer incómodo gera o caos, porque o mapa não ajuda a escoar. O mapa é puro labirinto, capricho. Poucos cidadãos dominam atalhos. As artérias principais são inevitáveis.

Os dias desta Primavera estão mortiços. Chuvisca. Isso é suficiente para que o trânsito exaspere. A urgente metrópole, afinal, lentifica tudo. Toda a gente reconhece com frustração a entropia, como se reconhecessem a persistência na cidade como uma casmurrice cara, arriscada. Já há muito quem se sinta natureza do tóxico da cidade. Quem sinta o vício da poluição ou do ruído. Um leitor contava-me que não suportava visitar os avós no silencioso, pacato, interior. Dava bicho voador, insecto demasiado e uma calma típica do que não vive. O interior, dizia, é fúnebre. Opressivo de tão à espera de nada. Ele necessita da surpresa e do uso intenso. Precisa de ser confrontado, igual a ter de estar em defesa efectiva constantemente.
Noite de sexta para sábado, subitamente, o céu forra com uma densidade impressionante. As nuvens parecem uma gigante nave alienígena espiando assustadoramente baixo. Chove cada vez mais. Pensamos todos nas reservas de água. É importante a extraterrestre dádiva e o medo tenta ser inteligente. O temporal intensifica-se e assombra verdadeiramente. A nave investe sobre a cidade com seus raios laser expressivos que iluminam a treva. Nunca ouvi ruído mais tremendo. Uma explosão contínua, sísmica, como se os vulcões pairassem, igual a uma caldeira negra preparada para entornar sobre nós. A nave alienígena rugia e São Paulo, com sua vertical e horizontal grandeza, queria só encolher. No hotel, num quarto ao lado, umas mulheres gritavam dizendo que, a cada relâmpago, brotaria Godzila do asfalto. Efectivamente, apenas em filmes escutei e vislumbrei coisa tão bíblica e aparentemente matadora.

De manhã, na televisão, comentavam que São Paulo precisa de quatro anos de chuva assim, ininterrupta, para se salvar da sede. As casas da classe alta ainda se abastecem. Há muito quem não entenda que a questão é real. Na maioria dos bairros, desligam o fornecimento a partir de uma determinada hora. Em algumas regiões, hora nenhuma, água nenhuma. A água é engarrafada e cara. Um fóssil transparente que as pessoas adquirem com as mãos preparadas para carregar cristal.

A Godzila não apareceu. A cidade estava exactamente na mesma. Os países tropicais davam-se a estrondos daqueles. Eu ainda perguntei se o ruído de rachar mundos ao meio era natural nas tempestades. Ninguém se impressionara. Lembravam-se de noites bem piores, muito piores, nas quais os velhos morriam de susto e os novos corriam às janelas julgando que outro planeta estivesse pousando na superfície do nosso.
Tomei duches de cachorro. Breves e tristes. Lamentei que muitas plantas estivessem a ser levadas para as ruas, a ver se viviam das regas do acaso. De outro modo, morrerão. Tornou-se obsceno cuidar de jardins. A pedra dos edifícios, das ruas, engole lentamente o verde circunscrito. São Paulo desenfeita-se.

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