Vamos colocar este Sequeira no lugar certo

A luz é a verdadeira protagonista da Adoração dos Magos

Exilado desde o final de 1823, impedido de regressar a Portugal após o fim do movimento vintista em que tanto se empenhara e recentemente regressado a Itália (em 1825 por alguns meses e definitivamente a partir de Setembro de 1826) depois de lá ter estudado e trabalhado até 1795, o pintor, então com 57 anos, encarou esse retorno como definitivo. Precisara, contudo, de se inserir de novo na comunidade artística da cidade que já não o conhecia, fazendo valer o prestígio do título de pintor régio e os créditos acumulados na longa carreira. Depois de ano e meio a trabalhar no vivo e competitivo meio artístico parisiense onde sentira dificuldades de integração e algum desconforto e desorientação sobre os novos caminhos da pintura europeia, o regresso a Roma permitira-lhe reencontrar velhos conhecidos mas, sobretudo, os conceitos artísticos em que tinha sido formado 30 anos antes. Voltou a dar aulas de Pintura na Accademia de San Luca. Instalou-se no nº 56 da Via dei Condotti (junto à célebre scalinatta da Piazza di Spagna, uma zona onde então viviam muitos artistas) e alugou atelier no nº 35 da Via Nuova (actual Via della Panetteria, a dois passos da Fontana de Trevi), trabalhando para alguma clientela local e internacional.

O ambiente da cidade mudara substancialmente nesses 30 anos. Depois do período de domínio napoleónico (1808-1815) a cidade regressava agora à normalidade. O Papa Pio VII fora libertado pela segunda vez em Junho de 1815 e regressara definitivamente à cidade. Do ponto de vista artístico, Roma dividia agora com Paris e Londres o protagonismo da centralidade artística. Não tardará que a sua importância seja eclipsada a favor da capital francesa. Por enquanto muitos jovens artistas e diletantes de variadíssimas nações continuam a demandar a cidade para fazerem a sua iniciação artística. Conservando o prestígio de outrora, a cidade não é já florescente como no passado. A crise do mercado local de arte que havia começado em grande medida com a invasão francesa do estado pontifício, prolongava-se num longo período de instabilidade em que se verificou uma diminuição drástica das encomendas por parte de mecenas particulares e das variadas instituições religiosas que afectam a vida material dos artistas que serão levados a reagir, unindo esforços.

Na década de 1820, uma nova e dinâmica geração de artistas viu-se confrontada com este problema que a todos afectava. Embora tenha tido algumas encomendas conhecidas por estes anos, o problema atingia Sequeira tanto quanto os restantes. A solução, amplamente preparada nos meses anteriores, levou à fundação no final de 1829 da Società degli Amatori e Cultori dei Belle Arti, uma associação que visava encorajar as artes derivadas do desenho e que juntava os pintores da cidade, italianos e estrangeiros, bem como alguns cultos amadores, promovendo uma grande exposição anual aberta ao público, montra dos seus trabalhos. Sequeira esteve amplamente ligado à fundação desta associação. Numa reunião ocorrida a 8 de Dezembro desse mesmo ano foram eleitos os corpos dirigentes e um conselho composto por 30 sócios, quinze artistas e quinze honorários, as duas categorias em que se dividiam os seus membros. No ano seguinte foram publicados os estatutos. Entre os signatários, uma longa lista de notáveis, encontravam-se Camuccini, Minardi, Thorvaldsen, Horace Vernet e Sequeira. A primeira exposição, inaugurada na Sala Nobre do Senado, no Capitólio, a 23 de Março de 1830, foi grandiosa recebendo uma verdadeira enchente de visitantes.

Para esta exposição enviou Sequeira a Adoração dos Magos, que pintara durante o verão de 1828 em Castel Gandolfo e uma Descida da Cruz pintada um ano antes. Duas outras telas com as mesmas dimensões e que com estas formam conjunto – uma Ascensão de Cristo e um Julgamento Final – já haviam sido começadas mas ainda não se encontravam terminadas e certamente por isso não foram mostradas. A última destas, aliás, ficaria por acabar. É neste contexto que Sequeira obtém o grande triunfo público com as suas obras finais de que a historiografia há muito se faz eco sem se conhecer concretamente as circunstâncias.

Que caminho seguir?

Comentando esta primeira exposição um director da Società escreveu anos mais tarde que ela “fazia, de certo modo, testemunho da incerteza em que se encontravam os artistas acerca da via a seguir” (De Sanctis, 1900). Na verdade, o meio artístico romano andava envolto em polémicas que arrastavam todos para o debate sobre os trilhos a prosseguir. Na década de 1820, a corrente classicizante era ainda liderada por Vincenzo Camuccini e Jean-Baptiste Wicar que haviam desenvolvido um classicismo académico de índole heróica, no respeito pelos princípios do Belo ideal.

Porém muitos pensavam que esta estética se encontrava já esgotada e começavam a inquirir novas ideias, a experimentar novas soluções sem que, no entanto, ninguém tivesse certezas sobre os caminhos a prosseguir. Entre avanços e recuos, as experiências eram múltiplas. Estas polémicas tinham expressão prática: em 1821, por exemplo, num dos muitos episódios que confrontaram ‘clássicos’ e ‘novos’, a cátedra de desenho da Accademia fora entregue a Tommaso Minardi cuja eleição fora ostracizada por Camuccini e Wicar mas promovida por Antonio Canova e Gaspare Landi. As ‘facções’ confrontavam-se frequentemente na altura da atribuição dos prémios da Accademia. Entre alguns dos pintores da nova geração que haviam estudado na cidade mas tinham, entretanto, partido como Francesco Hayez ou Pelagio Palagi, desenvolvera-se um novo interesse: nos temas de história, em vez da exacta reconstituição arqueológica dos ambientes e da procura da verosimilhança naturalista, a sua atenção começava a concentrar-se na descrição das emoções dos personagens representados. E será esse, por ora ainda sem o saberem, um dos futuros trilhos da corrente romântica.

Foi a este ambiente de incerteza sobre os caminhos a percorrer que Sequeira regressou com o lastro da sua própria evolução artística e das variadas experiências que havia tido ao longo dos anos. Perante o que lhe era dado assistir – e como professor da Accademia encontrava-se no epicentro do debate estético – é natural que pretendesse tomar a sua própria posição. Não através da teoria porque nada deixou escrito mas pela própria prática da pintura. Neste contexto pode ser entendido o testemunho que nos foi transmitido pelo seu genro João Pedro de Carvalho e Brito, numa carta escrita após a sua morte, em Março de 1846, ao marquês do Lavradio (recolhida por Ângelo Pereira, 1955), ao dizer o propósito que o tinha levado a pintar as quatro telas finais, entre as quais a Adoração dos Magos de que aqui nos ocupamos: precisava mostrar, neste meio que já não o conhecia, o melhor das suas capacidades – “não os pintou por comissão de alguém mas de seu próprio motu para o fim de mostrar aos pintores de Roma, seus antigos amigos, a maneira de pintar”. Ou seja, para participar no debate da única forma que podia e lhe interessava: pintando pretendia mostrar a sua posição sobre os caminhos da pintura.

O modello a carvão e giz branco

A importância crucial que atribuía à realização desta pintura – como às restantes três que compõem o conjunto - levou-o a uma cuidadosa preparação de todo o processo. A composição foi estudada ao detalhe, primeiramente através do desenho, seguindo o habitual método académico. É certo que não são conhecidas neste caso as folhas contendo os estudos preliminares ou primeiros pensamentos mas a partir deles e da definição de ideias preparou seguidamente o excepcional modello a carvão e giz branco sobre papel (col. Museu Nacional de Arte Antiga) numa escala idêntica à pintura final. Nele revela a enorme mestria técnica de que era capaz e a capacidade evocativa de formas e volumes modelados através do claro-escuro no limite da desmaterialização das figuras que se encontram apontadas de forma vaga muitas vezes em posições ainda não definitivas. Só a partir de então se dedicou à fixação de cada personagem individualmente. São actualmente conhecidas 24 folhas contendo cada qual um ou mais estudos individualizados. Esta série de desenhos, actualmente dispersa por diversos museus e colecções privadas, foi exposta em 2013 no Museu Nacional de Arte Antiga. Como um encenador, nesses estudos definiu as expressões dos rostos, as poses, os gestos, de forma a tornar a presença de cada figura convincente num todo variado, repleto de motivos de interesse.

Porém, quando ponderamos a sequência dos estudos vemos que no grande cartão muitas figuras não estão ainda pensadas, surgindo apenas apontadas em vagos volumes nos seus lugares ou mudando de posições. Torna-se assim claro que a sequência do processo de trabalho foi modello–estudo individual de cada figura–passagem a pintura. Em algumas folhas estuda detalhes de figuras que na composição final não são contíguas, situando-se por vezes mesmo bastante afastadas umas das outras. Em outras vai modificando as poses até encontrar uma solução satisfatória. Neste processo de elaboração o cartão funcionou, pois, como um guião prévio ao qual foi fazendo ajustamentos.

Uma reflexão sobre a pintura

Qual era efectivamente a reflexão de Sequeira sobre a pintura, apresentada nesta obra? O que tinha a propor aos seus colegas de Roma? Constatamos que nela sintetiza muita da tradição da pintura europeia ‘clássica’ não sem deixar de afirmar valores próprios que vai defender e reinterpretar. Opções a assinalar são a abertura do campo de representação para uma extensão espacial maior do que era comum na grande maioria das suas composições até então e a inclusão de grande número de figuras, aspectos que reforçam a grandiosidade do tema. Ou a preocupação em reconstituir uma ambiência justa relativamente a um passado historicamente longínquo que pretende credível recorrendo ao exotismo dos adereços. Ou ainda a definição de um ambiente nocturno propício a fazer sobressair a transcendência do espectáculo da luz intensa e irreal, difundindo-se sobre o momento da apresentação do Menino aos Reis Magos. A intensidade dessa luz desmaterializa as formas, gerando uma ambiência de silêncio e mistério e oferecendo à imaginação a contemplação do Transcendente. Constatamos que a luz não é para ele um acessório da representação mas, pela qualidade emocional que lhe imprime, a verdadeira protagonista da cena. E nisso divergiu dos artistas do seu tempo que pouca importância lhe concederam no interior das representações.

Este retorno ao tema da luz vinha desde há algum tempo a ser explorado por Sequeira. Pela sua natureza muito se tem falado da influência da pintura do século XVII, em especial da lição de Rembrandt, sem que nunca se tenha provado que alguma vez tenha visto pinturas do mestre neerlandês. É, pois, de admitir o desenvolvimento de uma reflexão autónoma sobre as qualidades da luz baseada em experiências pessoais. Entre outras, não terá sido estranha a forte impressão causada por um espectáculo então muito popular em Paris e a que não pode ter deixado de assistir nos meses em que viveu nesta cidade entre 1823 e 1825. Refiro-me ao Diorama, uma atração criada por Louis Daguerre e Charles-Marie Bouton e que consistia em enormes paisagens pintadas de ambos os lados sobre um material translúcido, montadas numa sala própria, construída para o efeito. As cenas, habitualmente paisagens e interiores de igrejas góticas, eram depois iluminadas de variadas formas e intensidades de maneira a obterem-se sucessivamente os efeitos de dia, noite, nascer e pôr-do-sol. Através da manipulação da luz conseguiam-se imitar aspectos da natureza como as mudanças trazidas pelas estações do ano ou os diferentes cambiantes atmosféricos. Grande apreciador das técnicas e das novidades, é altamente provável que Sequeira tenha assistido a uma ou mais destas sessões que contribuíram para o regresso a um gosto pela iluminação forte e contrastada como indutora de emoções, reforçando em Sequeira a atenção dada às qualidades da luz.

A escolha de temas religiosos para as pinturas enviadas à primeira exposição livre da Società – além desta Adoração dos Magos também a Descida de Cruz - no contexto que acabámos de ver, não foi um acaso. É verdade que a maioria dos outros participantes igualmente o fizeram, o que demonstra a importância que a temática continuava a ter na cidade papal nos anos que se seguiram à derrota das forças napoleónicas e ao regresso do pontífice. Para Sequeira, que desde sempre tinha revelado uma profunda visão religiosa da vida, estes temas serviriam como forma de meditação existencial. A exaltação religiosa em que vive nos últimos anos vai conduzi-lo à criação de visões de acerbada espiritualidade.

Outro factor, porém, deve ser recordado: o enorme impacto que teve nesta altura em toda a Europa o livro de Chateaubriand, Génie du Cristianisme (1802). Nesta obra fundamental do início de oitocentos, o autor enaltecia a sabedoria e beleza da religião cristã, interessando-se particularmente pelos seus contributos artísticos e pela herança de uma tradição de séculos de suprema criação de beleza. A influência desta obra foi determinante na história do pensamento da primeira metade de oitocentos conduzindo, após o período de laicização gerado pelas ideias dos filósofos do Iluminismo francês e da subsequente política revolucionária jacobina, a um retorno ao interesse pelos temas da religião mas igualmente à própria tradição da pintura europeia que lhes dera expressão. Este regresso à espiritualidade cristã no interior da pintura deu-se, sobretudo, através de uma nova sensibilidade e da exaltação de vivências individuais (Nazarenos). Algo a que Sequeira também se mostra sensível nesta altura, idealizando mostrar através da pintura, em visões de realidades transcendentes, aquilo que a mente humana tem dificuldade em conceber.

No contexto em que surgiu, esta Adoração dos Magos constitui-se, pois, como um verdadeiro manifesto sobre as ideias de Sequeira para os caminhos da pintura do seu tempo. Caminhos esses alicerçados numa defesa da tradição de que se assume herdeiro. Apesar de pintada fora de Portugal e das referências do seu autor, esta obra excepcional, pela sua sensibilidade particular, faz inquestionavelmente parte da pintura portuguesa. Pode mesmo dizer-se que com ela – juntamente com as restantes três telas que compõem o conjunto e de que é indissociável - se encerra com chave de ouro o ciclo da pintura portuguesa antiga num programa alargado e complexo (as restantes telas colocam outras questões que não cabe aqui referir) que, fazendo a síntese de conceitos e valores desenvolvidos nos últimos 200 anos, aponta claramente (no inacabado Juízo Final) para os novos tempos e novos trilhos da pintura do seu tempo.

Conservadora de desenho do Museu Naciona de Arte Antiga

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