A vida mascarada por detrás do palco

Teatro Delusio, da companhia alemã Familie Flöz, abre o FIMFA e leva até ao Teatro Maria Matos os bastidores de um teatro. Três técnicos lidam com artistas e empresários, amores e intrigas. É a linha de fronteira entre ficção e realidade traçada pelos limites do palco.

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Pierre Borasci
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Nunca se tem a certeza do sítio para onde vai uma bailarina quando, em grands jetés sucessivos, sai do palco. Imagina-se que possa continuar a saltar durante minutos ou horas a fio. Em alternativa, considera-se a possibilidade de que, logo assim que o palco termina, se abra um gigantesco abismo para o qual se lança inocentemente. Nunca se sabe para onde se retira cada personagem de uma peça de teatro quando sai do nosso campo de visão, ignora-se se gasta o seu tempo a fazer alguma coisa de útil, se a sua vida avança alguma coisa, se apenas aguarda com todo o tédio do mundo que a narrativa possa lembrar-se de voltar a chamá-la à cena, ou se terá, afinal, uma vida muito mais preenchida e estimulante sempre que não se coloca às ordens do drama que decorre em palco.

A passagem do palco para os bastidores representa essa transição abrupta da ficção para uma realidade demasiado crua ou para uma suspensão da história. Talvez os bastidores sejam apenas o lugar onde actores e bailarinos trocam apressadamente de figurino, onde lidam com as frustrações artísticas, onde, durante alguns momentos, recuperam a sua vida para logo a seguir a interromperem de novo. Em parte, foi nisto que os marionetistas alemães Familie Flöz pensaram quando estiveram durante uma hora e meia num teatro em Trento, Itália, à espera que um técnico tivesse disponibilidade para lhes dar atenção. Havia espectáculo naquela noite, mas não era o deles – que só actuariam na noite seguinte. Não estando incluídos na lista prioritária das urgências do técnico, deixaram o olhar demorar-se na actividade dos técnicos, dos artistas e de toda a equipa nos bastidores, ouvindo discursos, testemunhando a chegada de adereços, vendo objectos serem colocados em palco que logo eram recusados pelo encenador e descobrindo todo um lado cómico e absurdo naquele microcosmos.

“Viajamos tanto, temos tanto contacto com estes técnicos nos bastidores, sabemos tantas coisas sobre eles… devíamos fazer uma peça sobre esta gente”, lembra-se Michael Vogel de dizerem antes sequer de a sua espera terminar. “Depois, mais tarde, claro que veio toda a parte poética, metafórica e simbólica, mas o início era mesmo a ideia de que Bertolt Brecht falava: há pessoas na sombra e há pessoas na luz; vamos falar das pessoas na sombra.”

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Teatro Delusio, o espectáculo de abertura do FIMFA (Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas) que tem lugar no Teatro Maria Matos, Lisboa, de 11 a 13 de Maio, passa-se nos bastidores de um clássico teatro italiano e, sem uma única palavra falada, põe-nos diante de três técnicos do teatro, representados por três actores que, na verdade, asseguram o desfile de 30 diferentes personagens – bailarinos, actores, empresários e toda uma galeria de figuras cuja presença nos bastidores anima essa região pouco iluminada de cada espectáculo.

No fundo, a Familie Flöz vira o palco do avesso, coloca-nos o olhar na antecâmara do suposto espectáculo, deixando-nos a imaginar o que se passará num palco que nunca chegamos verdadeiramente a visitar. Focados nos bastidores, a circulação que vemos fazer-se para o palco acontece através de duas portas, dois olhos que compõem uma máscara e que fazem de Teatro Delusio uma acção contínua que pode, afinal, acontecer apenas num território da imaginação. “A realidade não está em lugar algum”, diz Vogel, acerca deste lugar em que deverá imperar a realidade, mas que surge como explosão dessa mesma realidade. É nos bastidores que acontece tudo aquilo a que assistimos na peça. Mas tudo isto acontece normalmente ao longo de meses e anos, sem o frenesim que a Familie Flöz aqui sugere. “O teatro serve como localização para brincarmos entre os dois lados da fronteira, a consciência e a subconsciência, entre aquilo a que chamamos realidade e a super-realidade ou fantasia. Habitualmente estão separadas nas nossas cabeças, mas misturamos tudo isso aqui.”

A super-realidade

Em Teatro Delusio joga-se constantemente com a atracção por tudo aquilo que é velado, tudo aquilo que permanece escondido e, no entanto, a uma distância alcançável. As regras do teatro ditam que o público permanece sentado a receber aquilo que se passa no palco, enquanto a transposição dos seus limites é interdita a “pessoal não autorizado”. Claro que esse interdito, podendo esconder uma qualquer noção de verdade superior à ficção, tendo potencialmente a capacidade de negar tudo aquilo que vemos afirmado no palco (as cenas de ciúmes de toda a espécie entre protagonistas, o habitat natural para as intrigas e as disposições figadais, e em que figuras secundárias podem dinamitar ou reforçar aquilo que a ficção ingenuamente propõe), muitas vezes manifesta-se sob a forma de um profundo tédio e desinteresse. Daí que Michael Vogel fale de uma super-realidade – ou uma realidade concentrada.

O exemplo é fornecido pelo próprio Vogel, encenador e cenógrafo de Teatro Delusio e uma das peças-chave da companhia alemã. Tendo dedicado tanto tempo à construção de um espectáculo que se desenrola nesse lugar encantado de transição entre ficção e realidade, não resistiu à felicidade de ele próprio assistir ao espectáculo a partir dos bastidores. “Lembro-me de em Munique me ter sentado com a minha filha no backstage e ao fim de 15 minutos voltámos para a plateia porque era muito aborrecido – os actores vão ara os bastidores, trocam de roupa e regressam ao palco.” “Não se passava nada”, ri-se como se tivesse sido vítima do seu próprio engodo. Delusio não significa senão isso: a desilusão ou a ilusão intencional, um logro voluntário e assente sobretudo naquilo em que o público quiser acreditar.

Baseando-se em histórias próprias, relatos “chocantes, perigosos, excitantes ou cómicos” recolhidos junto dos técnicos com quem trabalham ou pondo simplesmente a imaginação a trabalhar, a Familie Flöz confessa que, às tantas, perdeu a noção daquilo que foi inventado e daquilo que terá, de facto, uma inspiração real. “Uma história é uma história”, responde Vogel, desvalorizando a fronteira entre factos comprováveis ou fabricados. Em cada uma destas 30 personagens de corpo inteiro vemos ecos de Charlie Chaplin ou Buster Keaton, toda a época do cinema mudo que a companhia sorveu desenfreadamente, mas também de Pina Bausch – com quem dizem ter aprendido os fundamentos do corpo como veículo de cada história. Corpos que escondem sempre o rosto. Aqui ninguém quer desmascarar ou ser desmascarado.

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