A vida aos 30 – uma geração a descobrir-se no caos

Através dos diários que recolheu junto de 13 pessoas, Joana Bernardo concentra em 30 Anos, 8 Dias um retrato geracional daqueles que estão a cumprir o seu 30.º aniversário. Um livro para quem veio antes e quem virá depois vislumbrar as vidas caóticas deste tempo.

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Joana Bernardo investiu numa edição de autor à venda na STET e na Letra Livre, em Lisboa Miguel Manso

Ao aproximar-se do 30º aniversário, Joana Bernardo foi-se apercebendo de que não correspondia à adulta que imaginara ser em criança. Talvez porque a sua mãe a tivera com 30 anos, o número sugeria-lhe uma acumulação de responsabilidades e estabilidades: filhos, casa própria, emprego certo. A radialista da Radar e designer freelancer começou então a pensar o quanto toda a sua geração (amigos, conhecidos próximos e outros que nem por isso) estava a construir um percurso pouco óbvio em relação à formação académica que tinha. “E apeteceu-me inventar um objecto que representasse essa mudança de paradigma, em que já não se constrói uma carreira, vai-se fazendo coisas, investe-se em projectos próprios que não são necessariamente para dar dinheiro”, explica ao PÚBLICO. O mestrado em edição deu-lhe o contexto perfeito para colocar em marcha um retrato geracional que alimenta uma reflexão colectiva sobre estas questões, em que Joana reflecte também através (das vidas) dos outros.

30 Anos, 8 Dias reúne textos de 13 pessoas a contas com a chegada aos 30. São músicos, designers, cientistas, artistas visuais, fotógrafos, cineastas, cenógrafos, actores, produtores, frequentemente várias coisas em simultâneo. “Algumas são minhas conhecidas, já me tinha cruzado com elas nalgum sítio, mas há outras com quem nunca tinha falado e que aceitaram o convite”, resume. No fundo, gente nascida entre 1984 e 1986 que Joana foi arregimentando com uma proposta tão simples quanto exigente: durante 8 dias, de forma a poder sugerir uma rotina, escrever um diário. Caso todos aqueles que aceitaram entrar no jogo tivessem levado a tarefa até ao fim, o livro poderia ter ganhado uma dimensão insustentável, mas houve quem não conseguisse cumprir com o rigor que a tarefa exigia.

30 Anos, 8 Dias é o culminar de um longo processo em que Joana Bernardo começou por pensar num scrapbook em que recolheria “materiais que já estivessem em circulação”, espalhados pelos facebooks, instagrams e imprensa desta vida. “Isso tinha que ver com a minha personalidade, porque não me sinto muito à vontade para abordar os outros e para depender dos outros”, admite. Depois ainda pensou em realizar uma série de entrevistas (em torno desta ideia de marco simbólico na vida adulta) acompanhadas de ilustrações, mas “as duas cobaias” a que recorreu enquanto testava hipóteses levaram-na a concluir que o formato não funcionava. Até que, finalmente, lhe ocorreu a ideia de diário, por permitir uma forma mais livre, entre “o relatório muito esquemático e uma coisa mais íntima”.

Assim é: se o artista Diogo Evangelista resume os seus dias à mais sintética sequência de eventos, em que em seis ou sete passos temos um vislumbre mínimo de uma rotina que passa por levar a filha à escola, trabalhar no atelier, jantar e enfiar-se na cama, a designer e realizadora Catarina Vasconcelos aproveita a deixa para colocar no papel a sua intimidade – amorosa e familiar –, ao mesmo tempo que imprime no seu relato o corrupio constante e o ritmo acelerado em que muitas destas vidas se vão desenrolando.

Algo que é comum à primeira participante, a designer, directora artística e ilustradora Mariana Fernandes, com quem Joana Bernardo primeiro experimentou o formato de diário. A vida de Mariana, dividida entre Treviso (Itália) e Lisboa parecia a justificação perfeita para a abordagem. Após a resistência inicial da designer, tudo se resumiu à dispensa de qualquer ambição literária e a uma simples questão de “Quero saber como é a tua vida aí, como são os teus dias”. Esse primeiro envio tornou claro o quanto transparecia de um conjunto de anotações diarísticas: o ritmo elevado dos dias, os prazos constantes, as reuniões umas atrás das outras, os novos projectos, as viagens, a companhia constante da tecnologia (quer por razões de lazer quer profissionais), a ginástica para conseguir sempre manter uma vida social digna desse nome e o inevitável cansaço.

Para os que vieram antes e os que virão depois

Mesmo tendo avançado para os restantes participantes depois de perceber com Mariana Fernandes que aquele registo funcionava, Joana Bernardo fez questão de nunca partilhar qualquer exemplo do que pretendia. A ideia era sempre que, “sendo mais descritivo ou mais esquemático”, cada um partilhasse apenas aquilo que lhe aprouvesse. “Se quisessem dizer apenas que tinham ido médico, trabalhado das 9 às 5 e ido para a cama depois de ver um filme, era isso”, diz. “Mas aquilo que me parece acontecer é que quando alguém se senta a escrever sobre o seu dia acaba por reflectir sobre outras coisas – partilhando apenas algumas, porque há sempre filtros, claro.”

A partir dessas reflexões, outras se elaboram. E algumas, imagina Joana, só acabarão por dar qualquer resposta às suas questões iniciais num futuro indeterminado. Mas há algo que transborda muito claramente deste conjunto de relatos: “Pode soar cliché, mas sinto-me muito orgulhosa de fazer parte desta geração – e nem sempre foi assim”, diz. “Na altura em que acabámos a faculdade, não havia trabalho nenhum. Fomos super mimados durante toda a escola e durante o nosso crescimento, e depois percebemos que não éramos capazes de fazer nada. Mas conseguimos superar isso, começámos a fazer coisas e a perceber, no fundo, qual é o nosso papel aqui. Acho que nos alimentamos uns dos outros e isso é muito bonito. Estes diários são um reflexo do caminho que estamos a percorrer.”

Esse percurso pouco linear, inventado à medida que se vai avançando, leva à constatação do tal novo paradigma profissional. Joana Bernardo acredita que para os pais a sua vida e daqueles que são próximos deve parecer-lhes “um bocadinho errática”. E exemplifica com um amigo que “põe música, depois faz um freelance em ilustração e no dia seguinte é capaz de estar a fazer figuração numa telenovela”. “Acho que os nossos pais não fazem mesmo ideia da vida caótica que temos”, ri-se. “Este objecto acaba por ser também um pouco para eles.” Porque se há algo que se lê também com alguma facilidade em 30 Anos, 8 Dias é como para esta geração a falta de estabilidade pode ter, de facto, um impacto directo em decisões de vida profundas (ter filhos, comprar casa, etc.), mas é vivida também com a liberdade de quem não se sente fatalmente preso a um emprego até à idade de reforma (a reforma que ninguém com 30 anos sabe se chegará a ter).

Do livro acaba por emergir também uma personagem que Joana Bernardo queria que atravessasse os testemunhos. “A cidade onde se cresce e se vive é determinante para o nosso crescimento e para a nossa personalidade”, refere em relação a uma Lisboa que corre sempre em fundo e, por isso, obriga à inclusão de um glossário que explica alguns dos cenários por que cada um passa na inventariação dos seus dias (de onde se destaca, em particular, a quase omnipresente Galeria Zé dos Bois). E se Joana pensa este livro, uma edição de autor à venda em Lisboa na STET e na Letra Livre, como podendo dirigir-se à geração dos pais, imagina-o também a poder, daqui por 30 anos, confrontar quem vier depois com a vida em Lisboa num período fundamental da idade adulta.

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