A última lição do historiador que escancarou o salazarismo

Para Fernando Rosas seria fácil rebobinar a história e lembrar as portas que abriu ao conhecimento do salazarismo. Mas na última lição académica que dará esta quinta-feira decidiu falar da revisão da memória histórica e da hegemonia que a alimenta. Retrato de um intelectual engagé.

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A última lição de Fernando Rosas, no Auditório da Reitoria da Universidade Nova, é aberta ao público ADRIANO MIRANDA

Fernando José Mendes Rosas chegou tarde à História. Entre o dia em que terminou o seu mestrado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e a tarde em que proferirá a sua última lição académica passaram pouco mais de 30 anos. Pouco tempo para uma carreira. Tempo suficiente para deixar uma marca indelével na historiografia do Estado Novo. Partindo da análise económica e social do salazarismo, Rosas estudou depois a razão da sua longevidade política e trouxe uma luz nova sobre a ditadura que governou o país entre 1926 e 1974. As suas teses “são tão detalhadas e têm uma base tão sólida que permanecem actuais”, diz Luís Trindade, professor na Universidade de Londres e discípulo de Fernando Rosas. Uma análise assim tão profunda, continua, “tem conseguido moderar o revisionismo de alguma historiografia do Estado Novo” que surgiu nos últimos anos. E faz com que “a nossa relação com a ditadura seja mais saudável do que a da Espanha”.

Quando Fernando Rosas decidiu regressar à academia após mais de uma década de activismo político, fez tábua rasa ao seu passado académico. A influência de um seu avô advogado, republicano e anti-fascista que visitara no Aljube com seis anos levara-o a estudar Direito, mas já no Liceu Pedro Nunes a sua "paixão era a História”, até por causa de “uma grande professora, a Fernanda Espinosa, que era a mulher do Oliveira Marques”, explica o historiador que agora se jubila. Houve outras razões que o levaram a “adiar a paixão”. Por um lado, “o curso de História antes do 25 de Abril era uma monumental seca. A História acabava aí por volta de 1600”, nota. Por outro, Direito era nessa altura a escola ideal para a política. Rosas tornara-se um activista ainda no Liceu: milita no PCP em 1961, em 1965 é preso pela primeira vez.

Em 1970, Fernando Rosas está na fundação do MRPP e no ano seguinte será preso pela segunda vez. Depois do 25 de Abril, o seu activismo exerce-se na direcção do jornal Luta Popular, do MRPP ou, depois, pela presença nas listas de candidatos do PSR à Assembleia da República. Com a normalização do regime democrático – e, provavelmente, com a derrota da extrema-esquerda , está então em condições de regressar à sua velha paixão. “Fiquei credor de um conselho que lhe dei sobre a sua carreira”, recorda o historiador Manuel Villaverde Cabral. “Veio-me dizer que queria recuperar a sua carreira universitária. Eu respondi-lhe: ‘Se fosse a si fazia um mestrado’”. Porque os 13 valores do curso de Direito não auguravam grande futuro. “Ele tinha uma nota que era um castigo político, mas não deixava de ser uma nota”, lembra Villaverde Cabral, que lamenta “não poder estar presente” na homenagem ao historiador.

Fernando Rosas sabia o que queria investigar. O conceito do Saber Durar, a peça-chave de toda a sua obra sobre o salazarismo, era a mola que impulsionava a sua curiosidade. “Foi essa questão que me fez ir para a história do Estado Novo. Como é que foi possível uma ditadura tão longa? Porquê? Onde está o segredo do saber durar?”, recorda. A procura dessas respostas levou-o a identificar um regime que nasceu de “um combate violento no qual as partes conservadoras ganharam”, como nota Luís Trindade, e se consolidou através de “uma lógica política assente em relações sociais e em interesses económicos nas quais Salazar era uma espécie de árbitro”, continua o historiador. Fernando Rosas estuda então os mecanismos de um poder pessoal que “equilibrava a relação de forças e nivelava as tensões”, nota Trindade. “Mais do que a genialidade política, o que mantém Salazar é o seu poder de arbitragem."

“Fernando Rosas teve capacidade de produzir uma interpretação global, de criar uma visão panorâmica do Estado Novo com a qual nada se compara”, acrescenta Manuel Loff, professor na Universidade do Porto. O saber durar “é a abóboda que fecha a cúpula”, nota.

Começar do quase nada

Quando Fernando Rosas chegou à Nova, o panorama do saber sobre o Estado Novo era esparso e incipiente. Manuel de Lucena, que Fernando Rosas define como “um pioneiro no estudo da História Contemporânea”, tinha publicado em 1976 A evolução do sistema corporativo português em dois volumes. Erauma tese luminosa, baseada em intuições”, diz Rosas, o que se justifica pelo facto de Lucena estar no exílio e não ter podido aceder a arquivos. Em 1980, Manuel Braga da Cruz publica o seu estudo As Origens da Democracia Cristã e o Salazarismo. Aparece também António Telo. Mas a desmontagem do Estado Novo estava ainda por fazer. 

A obra de Fernando Rosas muda tudo. A sua tese de doutoramento, Portugal Entre a Paz e a Guerra (1939/45), consolida-o como um mestre do período. Quando, por essa altura, José Mattoso procura um historiador para assumir os encargos do volume dedicado ao Estado Novo da sua monumental História de Portugal, Fernando Rosas, um recém-chegado à profissão, é o eleito. Uma escolha banal, sugere Rosas. “Havia muito pouca gente a trabalhar nesse período”, explica. O seu trabalho, porém, deixaria raízes. Com a participação na História de José Mattoso, Rosas “tornou-se um historiador incontornável para todos os que quisessem trabalhar o século XX português", argumenta Manuel Loff: "Era impossível fazê-lo sem olhar às suas obras."

Pouco depois, uma outra obra de fôlego marcaria o seu percurso: o Dicionário de História do Estado Novo, que dirigiu com J.M. Brandão de Brito, revelaria uma outra faceta do seu perfil académico: a capacidade de organizar equipas. Em 1994, Rosas fundou o Instituto de História Contemporânea (IHC) na sua faculdade, que dirigiu até Fevereiro de 2013. “Fernando Rosas ajudou a Nova a tornar-se um centro principal da produção de História da época contemporânea em Portugal”, diz Manuel Loff, que teve o historiador no júri das suas provas de mestrado e de doutoramento e se diz “herdeiro de um passo importante que ele deu”.    

A capacidade de separar a política da História é outro dos alicerces do seu reconhecimento na área das ciências sociais. Rosas sofreu com a perseguição política de Salazar e de Caetano, mas “a sua história é claramente de natureza científica, ninguém diz que é uma história militante”, nota Loff. “O salazarismo nunca é apresentado de forma maniqueísta”, reforça Luis Trindade. “Sou um historiador. Nunca fui um político profissional. Só o fui no anterior regime e no PREC”, remata Fernando Rosas. Ainda que as ideologias políticas influenciem as formas de se olhar a História. Fernando Rosas assume que o marxismo é o seu “referencial teórico” e elege como seus ídolos dois historiadores marxistas, E.P. Thompson e Eric Hobsbawm. Mas, diz, nunca fez "política como historiador nem História como político”.

Questão diferente é quando em causa estão interpretações que julga distorcidas ou tentativas de revisão da História que sustenta. Na sua última lição desta quinta-feira, às 17h30, aberta ao público no Auditório da Reitoria da Universidade Nova, Rosas recupera o tema com uma intervenção sobre História, (des)memória e Hegemonia. “O capitalismo keynesiano está a ser substituído por uma nova ordem que procura uma nova legitimidade histórica”, explica, o que impulsiona “um movimento neoconservador de revisão da História”. A preocupação dessa nova ordem, nota Loff, é “transformar o salazarismo num regime banal”.   

Peça fundamental da rede de herdeiros da extrema-esquerda que criaram o Bloco de Esquerda em 1999, Rosas esteve no Parlamento até 2005. Nunca deixou de dar aulas. Nem de investigar e de escrever. Hoje, jubila-se simbolicamente. Tem 70 anos mas promete continuar a estudar. E a intervir. Ou não fosse ele um dos principais intelectuais engagés do Portugal dos últimos 30 anos.

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