A telenovela errática (com Godard a espreitar)

A desilusão do filme póstumo de Raul Ruiz compensada pela redescoberta de um Godard esquecido.

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La Telenovela Errante dr
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Valeria Sarmiento LUSA/URS FLUEELER
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A actriz e produtora Chamila Rodriguez de La Telenovela Errante LUSA/URS FLUEELER
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O actor e produtor Francisco Reyes de La Telenovela Errante LUSA/URS FLUEELER
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Grandeur et décadence d’un petit commerce de cinéma dr
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Grandeur et décadence d’un petit commerce de cinéma dr

O que diria Raúl Ruiz (1941-2011) de ter La Telenovela Errante a concurso em Locarno? Não fazemos ideia. Não nos surpreenderia que o divertisse ver o que começou como um breve workshop criativo filmado no Chile durante alguns dias terminado, 25 anos mais tarde, pela sua viúva, a montadora e realizadora Valeria Sarmiento, e incluído na competição oficial de um festival que premiou Ruiz faz agora 50 anos (quando o próprio estatuto do filme tornaria mais sensato colocá-lo fora de concurso).

Mas a nós, desculpem lá, La Telenovela Errante não nos diverte nada. Na conferência de imprensa, Valeria Sarmiento explicou que Ruiz tinha pensado um projecto mais longo, que abandonou quando não conseguiu financiamento para o continuar. E se é bonito ver que um grupo de amigos e admiradores fizeram o que podiam para tornar La Telenovela Errante numa realidade, a verdade é que teria havido uma razão para o filme, cujo material acabou espalhado por arquivos institucionais em França, nos EUA e no Chile, ter ficado por acabar.

Aí está ela: é um filme pensado para o seu tempo e para o seu lugar (o Chile da transição para a democracia de 1990, que Ruiz descobria de olhos arregalados), um “olhar sarcástico sobre um Chile que lhe era estranho”, nas palavras da produtora Chamila Rodríguez, uma madalena proustiana que só terá efeito sobre aqueles que conseguem contextualizar a sua criação.

Para todos os outros, os 78 minutos de La Telenovela Errante não passam de uma curiosidade de “completista”: uma colecção de sketches progressivamente mais surrealistas e absurdos que rapidamente divergem do conceito original de uma paródia quase buñueliana às telenovelas que começavam a chegar ao Chile – não andamos longe de uns Malucos do Riso filmados por Iosseliani, por exemplo. Os aplausos tímidos no final da projecção davam a entender alguma decepção com o resultado final – e não conseguimos deixar de pensar que não havia verdadeiramente necessidade de tentar fazer um filme deste material errático e inacabado.

Ruiz não é o único “mestre” cujos filmes andaram por Locarno. Jean-Luc Godard esteve ausente em corpo mas presente em espírito com a recuperação restaurada de Grandeur et décadence d’un petit commerce de cinéma (fora de concurso), rodado em 1986 para a televisão pública francesa, meditação vertiginosa sobre as relações perigosas entre o cinema e a televisão. Um romance policial de James Hadley Chase é o “pretexto” para uma série de audições feitas por um realizador nas lonas e um produtor falido, respectivamente o velho cúmplice Jean-Pierre Léaud e o truculento Jean-Pierre Mocky. O filme alimenta-se do constante vaivém entre pequeno ecrã e grande ecrã, entre economia do cinema e economia da televisão, película e vídeo, passado e futuro. Visto a 30 anos de distância, é um filme presciente sobre os efeitos da “todo-poderosa televisão” no financiamento do cinema e sobre o próprio rumo da carreira do iconoclasta realizador, mas também sobre a resistência da verdadeira arte a toda e qualquer gaveta onde se queira enfiar. E, como de costume, Godard lança mais ideias por minuto do que muitos concorrentes na carreira inteira. Como comentava um crítico canadiano recém-chegado: “É uma chatice que o meu primeiro filme do festival seja um Godard, porque depois disto só pode ser sempre a descer.” Não deixava de ter alguma razão.

 

 

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