A singularidade encantadora de cada corpo humano

Gala expõe a heterogeneidade humana, na sua enternecedora vulnerabilidade e exultação.

Fotogaleria
Duas profissionais e 18 amadores (portugueses, recrutados para esta reencenação) povoavam a peça com coloridas e improváveis roupas pessoais. José Frade
Fotogaleria
Duas profissionais e 18 amadores (portugueses, recrutados para esta reencenação) povoavam a peça com coloridas e improváveis roupas pessoais. José Frade

O que acontece quando corpos de diferentes idades, etnias, destrezas físicas, género e morfologias se juntam a dançar em cena? Como reagem, ao serem chamados a executar, a partir do seu próprio imaginário, sequências simples de ballet, passos de valsa, movimentos improvisados, ginástica rítmica, requebros do rap ou do funaná, protocolares agradecimentos finais do espectáculo, ou clichés do pop, como o moonwalking de Michael Jackson?

Duas profissionais e 18 amadores (portugueses, recrutados para esta reencenação) povoavam a peça com coloridas e improváveis roupas pessoais. Deliciosa babilónia, cada um a desenvencilhar-se como podia diante do desafio, na alegria apreensiva de quem se lança sem rede no vazio. Fora das respectivas zonas de conforto, as aptidões de uns a soçobrar perante inesperadas habilidades de outros.  

Gala expõe a heterogeneidade humana, na sua enternecedora vulnerabilidade e exultação. Este é um dos leitmotiv políticos na obra de Jérôme Bel (França, 1964): desmontar a assimetria da relação entre intérprete e público. Vimos, por cá, no emblemático The show must go on (2002), gestos comuns replicar memórias individuais associadas a pop standards, o comentário subtil à sociedade do espectáculo; nos solos autobiográficos Isabel Torres (2006) e Cedric Andriex (2011), revelações intimistas de bailarinos a devolver carne e sangue à história da dança; no dueto Pichet Kluntchun & Myself (2006) o confronto entre a dança khon tailandesa e da tradição euro-americana, a destruir a ideia da dança como linguagem universal. Cour d´Honneur (2013) dava voz a recordações dos espectadores, e Disabled Theatre (2012) à fisicalidade de actores portadores de deficiência. Esbater fronteiras entre profissionais e amadores, o público e o privado, é desafiar os maneirismos elitistas da dança teatralizada, um empoderamento dos mais frágeis, da sua capacidade de auto-realização e de mudança social.

Não são passos e movimentos o que as “coreografias” de Bel organizam no espaço e no tempo - mas sim ideias e conceitos. Quantas vezes surpreendentes, na invenção de modos acessíveis de falar da complexidade do mundo a partir de dispositivos (aparentemente) simples. Bel reactualiza, nos tempos de hoje e nos seus próprios termos, o judsoniano legado contestatário dos anos 60. Suscita paixões e ódios e, cada nova peça, enormes expectativas.

A ideia de Gala (exaltar a diversidade dos corpos e da dança, e seus nexos a uma sociedade inclusiva) vai, contudo, perdendo o fulgor: sequências tendem a prolongar-se ou tornar-se previsíveis, desperdiçando a disponibilidade mental gerada no fabuloso início: belas fotografias de grandes dimensões de espaços cénicos despovoados - imponentes teatros líricos, de limpas linhas nipónicas ou de design hipster; minúsculos teatros de bonecas, em casinos feéricos ou em estanques estúdios de rádio; anfiteatros gregos, lugares semiabandonados… A forte carga poética a convocar múltiplos contextos da conexão intérprete/espectador. Se é certo que Bel subtrai em absoluto os seus intérpretes ao risco do olhar complacente, não foi a entrega generosa destes a vacilar, mas a batuta do mestre. A espaços, a gargalhada fácil ensombrou a delicadeza arguta dos argumentos. Sem o brilho de outras peças, Gala não deixa de ser uma obra inteligente e jubilatória, bem apropriada ao Dia Mundial da Dança que esta sexta-feira se celebra. 

Sugerir correcção
Comentar