A seriedade do animal

Marlene Monteiro Freitas estreia no teatro Maria Matos uma nova coreografia onde a sensibilidade do seu olhar se sujeita à mais violenta das ideias: a fixação.

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Marlene Monteiro Freitas Paulo Pimenta

Roubemos a um espectáculo anterior de Marlene Monteiro Freitas o título que nos serve como pista para ler De marfim e Carne – As estátuas também sofrem, coreografia que esta sexta-feira se estreia no teatro Maria Matos, em Lisboa, no âmbito do Alkantara Festival.

O modo como a coreógrafa tem procurado explorar as fronteiras da complementaridade entre o que é móvel e o que é fixo sugere que o movimento a que os corpos dos bailarinos se sujeitam é, também ele, um território de contradições. As coreografias de Marlene Monteiro Freitas (n. 1979, ilha do Sal, Cabo Verde) exploram uma ideia de corpo como entidade em ferida, como se os movimentos fossem modos de o cicatrizar. A violência dos seus gestos não é mais exposta por parecer que os seus bailarinos agem sem defesas num palco que muitas vezes se assemelha a uma arena.

Vimos já como mesmo o mais árido dos terreiros é vigiado por um olhar de cuidado e atenção. Paraíso – Colecção Privada, opus magnifico que Marlene Monteiro Freitas estreou em 2012, era um exemplo de redenção ex machina, um jogo de espelhos e ambiguidades em que a coreógrafa se divertia a brincar com a entrega dos bailarinos e, a partir da perda de identidade, os manipulava para, com esses corpos agora anónimos, construir uma nova ordem social.

De Marfim e Carne – As estátuas também sofrem é, de certo modo, um prolongamento dessa terra de ninguém que Marlene tão bem sabe desenhar e para onde atira os corpos dos intérpretes. É aqui que entra o título da sua coreografia de 2009, A Seriedade do Animal, nome que já havia roubado a Brecht. A coreógrafa fala-nos de um desejo de perceber o que nos aproxima, na nossa mobilidade, das estátuas e daquilo que as humaniza. “São estados de petrificação”, reflecte, ao olhar para o que os corpos de Andreas Merk, Betty Tchomanga, Lander Patrick, (aos quais se juntam o da própria coreógrafa, do baterista Cookie e de três músicos amadores, que mudarão a cada apresentação do espectáculo). O que eles fazem, na reacção a um monólogo de Persona, de Bergman, na memória de um dos jantares de A Festa de Babette, no diálogo com as sonoridades dos Arcade Fire e de Omar Souleyman, é “um modo de estar” que é “um modo de estar no lugar de outra coisa”.

Marlene Monteiro Freitas gosta de binómios, de justaposições, de contrastes, de contradições. De Guintche (2010) - esse tour de force que fixou a sua imagem, e o seu discurso, como o de alguém sem medo de pensar o movimento como espiral ascendente, em nada abstracta, em tudo carne, peso e forma – até A Seriedade do Animal, o despojamento que já nos havia tocado em Primeira Impressão (2006), esse ars poetica com que nos mostrou não ser só uma coreógrafa que deixava tudo em palco, chegamos agora a uma outra ideia de construção.

A coreógrafa fala de como “tudo é muitas vezes invisível” e de como se interessa “por um ponto de vista que surge de dentro”, muitas vezes a partir do olhar dos bailarinos. Assim, as estátuas que dão título à coreografia são, na sua imensa inquietude, modos de pensar estratégias de ocupação de um espaço que é sensível porque físico. O que vão revelando através da sua entrega é um espaço que nunca se delimita e cujas fronteiras não acabam no corpo. E que não cabem dentro dele. Estátuas, porque fixas, mas estátuas, sobretudo, porque eternas.

Marlene não parece acreditar na efemeridade do movimento porque nunca se fixa na possibilidade de erosão que o tempo exerce na dança. Ao descrever as sequências, o seu corpo irrequieta-se, as suas mãos reproduzem-nas, as suas palavras atropelam-se porque hesitam em fixar o que não existe apenas sob uma descrição. “Tenho dificuldade em estar, em me ver, de fora”, confessa ao PÚBLICO. “Muitas vezes olho para os olhos dos bailarinos e vejo mais do que o movimento [porque] quero criar figuras [mas] não personagens”. Do mesmo modo que em A Seriedade do Animal não era o texto de Brecht que lhe interessava que fosse fixado, também agora não é a ideia de finitude que vai buscar à presença das estátuas. É uma hipótese de redenção contra a efemeridade. E um alerta contra a estagnação. 

Depois do Alkantara, o espectáculo integra a programação do próximo Festival de Montpellier, onde se apresenta em Junho.

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