A revolução alegre

Quarenta anos depois, a editora E-Primatur foi resgatar, de uma penada, quatro livros de Leiria, repondo-os em circulação.

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Quando a primeira edição de Imagem Devolvida foi publicada em 1974, Mário Cesariny saudou acidamente, em “Nota” que prefaciava o volume, o “poema-mito” de Mário-Henrique Leiria (1923-1980), escrito um quarto de século antes: “[…] marcas o record desmaiante de reter a urina do poeta durante vinte e quatro anos! Que inveja negra te tenho! E que alívio agora suponho! Que bom!... E que merda tudo isto há vinte e quatro anos!”

De facto, e embora Mário-Henrique Leiria tenha participado desde 1949 nas manifestações públicas e colectivas (exposições, catálogos, cadáveres esquisitos, etc.) do Grupo Surrealista Dissidente (com Cesariny, António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas e outros), foi só em 1973 que se estreou individualmente em volume, com a publicação dos muito, e muito justamente, celebrados Contos do Gin-Tonic. Reincidiu no ano seguinte com Novos Contos do Gin e com Imagem Devolvida:Poema-Mito.

Em 1975 publicou Casos de Direito Galático/O Mundo Inquietante de Josela (Fragmentos), Conto de Natal para Crianças e Mário e Isabel, uma banda desenhada erótica, sendo os desenhos de Isabel Lobinho. Em 1979 foi editado o volume Lisboa ao Voo do Pássaro. Os dois volumes de Contos do Gin fizeram de Leiria o mais cultuado (e até mesmo estranhamente “popular”) autor surrealista português (Cesariny exceptuado, obviamente), e tornaram-se “long-sellers”, somando várias reimpressões. Os restantes livros publicados em vida do autor caíram no esquecimento (ou noutro sítio semelhante). E foi aí que (quarenta anos depois!) a editora E-Primatur foi resgatar, de uma penada, quatro desses livros, repondo-os em circulação numa colectânea intitulada, justamente, Casos de Direito Galático e Outros Textos Esquecidos. Ausente desta colectânea ficou Mário e Isabel. Quiseram os deuses, porém, que o ano fosse leiriano: a Associação Chili Com Carne acaba de publicar uma antologia de BD portuguesa da década de 1970, intitulada Revisão, na qual são revisitados espécimes do trabalho colaborativo de Leiria e Lobinho, incluindo um inédito.

A exuberância exclamativa de Cesariny (aliás tão contrária às modas vigentes) terminava parafraseando astuciosamente um dito de Vieira da Silva: “Como é possível escrever sobre uma coisa que é para se ler?” Para se ler e para se ver, acrescento eu, uma vez que em todos os livros agora coligidos os textos interagem (como agora se diz?) ou com ilustrações de Cruzeiro Seixas ou com fotografias de João Freire ou com outras imagens (“anónimas”) recortadas de jornais (estratégia não poucas vezes utilizada pelos surrealistas).

Escreva-se, então, que, embora muitos dos seus inéditos venham sendo, ocasionalmente, publicados – por exemplo, no extenso estudo sobre O Surrealismo em Portugal, de Maria de Fátima Marinho (1987), numa separata da revista Espacio/Espaço Escrito (1990), no volume Depoimentos Escritos: Contos, Poemas e Cartas de Amor (Estampa 1997), e no estudo Mário-Henrique Leiria Inédito e a Linhagem do Surrealismo em Portugal, de Tania Martuscelli (Colibri, 2013) – a obra de Leiria continua a carecer de uma edição sistemática. Enquanto tal não acontece, saudemos a presente colectânea, que quase alcançou o “desígnio” assumido de juntar num volume “todos os livros publicados em vida do autor que não estavam disponíveis no mercado”.

Tais livros, aqui ordenados cronologicamente, não foram estritamente fac-similados, mas “na sua reprodução foi tida em conta a organização gráfica das primeiras publicações”. Decisão acertada (se é que outra poderia haver), considerando, por exemplo, as peculiaridades gráficas do “poema-mito” ou do “conto de Natal” manuscrito pelo autor.

A intervenção surrealista em Portugal, enquanto “movimento” mais ou menos organizado, foi muito breve e Mário-Henrique Leiria foi, por seu lado, um surrealista heterodoxo. Formal e programaticamente, Imagem Devolvida é o livro mais canonicamente surrealista deste volume. Tal não surpreenderá, tratando-se de uma obra de 1949/1950. O Conto de Natal para Crianças, datado pelo autor de Dezembro de 1972 (mas que só foi publicado em 1975), cola ao texto, de um aparente e inofensivo realismo, imagens recortadas de jornais e quase sempre macabras ou violentas. Um humor por vezes negro faísca da fricção entre texto e imagem.

Assim, e por exemplo, a primeira página do conto é constituída pela imagem de um cadáver desventrado e pelas palavras “Tendo dormido secegadamente” (sic). Lisboa ao Voo do Pássaro foi o último livro publicado por Leiria, em 1979, e é o mais extenso desta edição. Eu chamo-lhe fotopoema. Neste caso, o texto parece nascer das fotografias de João Freire, segue-as de perto, comenta-as, legenda-as. Trata-se de uma peregrinação, mais triste do que alegre, pela Lisboa pós-revolucionária, uma deambulação pela cidade “traída” já pela “decretada austeridade”. À fotografia que dá a ver um homem urinando contra um taipal onde se lê a inscrição “Revolução alegre”, responde Leiria: “é mijar meus senhores / é mijar / à revolução alegre / à revolução traída / em Lisboa / que querem? / é a vida…”

Provavelmente, será no humor, no absurdo, no insólito e no maravilhoso ou no fantástico dos exemplares Casos de Direito Galático (utilização paródica do dispositivo retórico da ficção-científica) e dos fragmentos de O Mundo Inquietante de Josela que os leitores familiarizados mais depressa reconhecerão o autor dos Contos do Gin. O efeito Leiria é obtido, bastas vezes, mediante recursos muito simples. Confira-se, para exemplo, o segundo caso jurídico-galático: “Fui roubado no mês que vem. Peço com insistência que não intervenham policialmente em tal assunto nem detenham o futuro ladrão que me roubou, caso contrário perderei toda a minha fortuna cristalina, que é exactamente o que já aconteceu.” (p. 29)

O ranger crítico de dentes perante as misérias políticas e sociais do português suave e quotidiano nunca está ausente das obras de Leiria, por mais surreais e líricas e fantásticas que estas se apresentem. Assim, o caso n.º 5 chega a parecer uma premonição de várias “bolhas” financeiras por vir: “Querem tornar-me rico. Isto assim não pode ser. Vou ficar na miséria.” Particularmente exímios, no recurso a uma poética prosaicamente realista para a narração de casos e situações inquietantemente insólitos, são os fragmentos de Josela. Diria que, aí, a verdadeira revolução leiriana volta a ser alegre.

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