À procura do corpo primitivo

A coreógrafa uruguaia Tamara Cubas estreia-se sábado e domingo em Portugal com Puto Gallo Conquistador, uma reflexão sobre o corpo a partir das memórias da colonização.

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PAOLA NANTE

Por vezes as ideias surgem de onde menos se espera. Há um ano, a coreógrafa uruguaia Tamara Cubas encontrou um grupo de artistas portugueses com os quais quis trabalhar sobre a “memória recente”. Acabou a andar para trás, em direcção ao passado, e a trabalhar sobre a guerra colonial. Puto Gallo Conquistador, a sua estreia em Portugal a convite do Próximo Futuro, que co-produz o espectáculo, é o resultado desse encontro: uma coreografia intensa interpretada com a urgência de quem tem mais dúvidas do que vontade de impor um olhar sobre o modo como “o corpo encontra as suas lógicas e a sua poética” e, a partir delas, aprende a “relacionar-se com aspectos desprezados pelos processos coloniais, como o ritual, o místico, o bárbaro, o orgânico, o gutural”, explica.

Puto Gallo Conquistador, que se apresenta sábado e domingo (dias 6 e 7, respectivamente) na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, mostra-se – o que é substancialmente diferente do impositivo “mostra-nos”, porque recusa a generalização provocada pelo binómio nós/outros – como "exercício de compreensão do passado”. A partir de textos e de ideias desenvolvidas pelo sociólogo português Boaventura Sousa Santos e pela investigadora brasileira Suely Rolnik, nomeadamente a sua tese acerca do "retorno do corpo-que-sabe”, a estrutura criada por Tamara Cubas observa um outro Uruguai, um país que se estendeu a partir da Colónia do Santíssimo Sacramento, fundada pelos portuguese em 1680, depois tomada pelos espanhóis, e que só após as lutas contra o Brasil, entre 1810 e 1928, conseguiu  a sua independência. “A nossa estratégia foi elaborada a partir [das memórias] e, então, investigámos formas de descolonização, de desocidentalização”, explica. “Não se tratou de investigar sobre o Uruguai anterior à conquista colonial, mas de [procurar] um tipo de corpo despojado de pensamento racional que utiliza outras formas de acção, de relação e de conhecimento, entendidas como primitivas”, acrescenta.

“Acredito que um estudo sério sobre a identidade cultural não pode deixar de lado o colonialismo”, diz a coreógrafa, "mesmo que hoje em dia pareça haver uma onda de criadores que trata o tema e que portanto possamos cair num exercício algo fútil sobre o passado". Mas, tal como em criações dos brasileiros Marcelo Evelin (De repente fica tudo preto de gente, que fará digressão em Portugal a partir de 19 Setembro, com escalas em Minde, Lisboa e Porto) e Lia Rodrigues (na trilogia Pororoca, Piracema e Pindorama, que passou por Lisboa, Porto e Guimarães), ou pela sul-africana Robyn Orlin (At the same time we were pointing a finger at you, we realised we were pointing three at ourselves…), há em Tamara Cubas uma reflexão que vai para lá de um dispositivo reactivo. “A colonização, a dada altura do seu processo, põe em perspectiva, cria ordens e determina regras de jogo às quais algumas populações autóctones se conseguiram adaptar; outras foram dizimadas por não as acatarem, como aconteceu connosco", argumenta.

Não é apenas uma alteração de perspectiva. A relevância de Puto Gallo Conquistador decorre da necessidade de contribuir para a alteração do discurso sobre "o outro", no sentido em que, para quem foi colonizado, esse "outro" era o próprio colono. Como é que a alternância de papéis estruturou um diálogo contaminado por uma história de violência é a base de uma coreografia em que a dormência dos corpos surge, por vezes, como um modo de observação que é ao mesmo tempo um modo de reacção.

Na fronteira do controlo

Num texto publicado no jornal La Diaria após a estreia do espectáculo em Julho, em Montevideu, a crítica Lucia Naser falava desta “obra com nome estranho” como uma organização, eventualmente social, “de um conjunto de dissidências individuais que se transformam em colectivo, instalando novos acordos permanentemente transitórios mas nunca inteligíveis para uma civilização racional”. O abandono do corpo ao estado de transe, numa espécie de oposição passiva do “outro” sobre “o que observa”, constrói corpos que se podem descrever como “na fronteira do controlo sobre si mesmos e do que é admitido como social”. Cubas fala de uma pesquisa sobre “os limites internos do próprio corpo” e o que se intui das linhas desenhadas no palco, no lastro poroso que a memória vai  deixando, é o desenho de um corpo assente numa “estética descolonial” que, segundo Lucia Naser, propõe uma temporalidade que “não é nem futurista nem ancestral”. “O colonialismo é a cara oculta da modernidade, como disse o argentino Walter Mignolo, e essa modernidade é ainda uma realidade. O colonialismo tem hoje outras formas, menos evidentes, mas nem por isso menos terríveis."

Puto Gallo Conquistador tenta problematizar essas regras aplicando-as à cena, um processo semelhante ao utilizado por Régine Chopinot em Very Wetr!, feito em colaboração com bailarinos da Nova Caledónia, num dos mais mal-amados espectáculos sobre o poder do palco como catalisador, e “reescritor”, de memórias. “A identidade a que me refiro é necessariamente contaminada pelas influências das outras colónias, e portanto, pela identidade do colonizar, na sua relação com ‘o outro’, o que é perfiférico, o subalterno, o subdesenvolvido ou o exótico”, sublinha Tamara Cubas. A sua coreografia oferece-se assim como campo de reflexão sobre o processo de construção de um passado comum – e sobre o modo como ele está presente até hoje nos corpos contemporâneos.

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