A polifonia da guerra pelos olhos de Salomé Lamas

Pela primeira vez no seu percurso, cria uma obra para o palco. A convite da bienal BoCa, a cineasta mergulhou num museu de cera de Beirute e colocou uma Penélope contemporânea no meio de um coro dissonante de vozes políticas e religiosas. Fatamorgana mostra-se no CCB a 12 e 13 de Abril.

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Durante os anos de 2014 e 2015, Salomé Lamas acumulou recolhas de imagens na Transnístria, na Bulgária e na Moldávia para um filme de câmara apontada à ressaca da Guerra Fria que há-de chamar-se Extinção. Na Transnístria, enclave pró-russo em território moldavo, viu-se interrogada pelo KGB, recorreu a guiões falsos e teve ser ardilosa para prosseguir com o seu trabalho. “Sei bem o que é propaganda política”, justifica ao Ípsilon. Devido a essa experiência vivida na pele e não escutada pela voz de terceiros, mede bem as palavras quando afirma que nunca tinha visto tamanha encenação propagandística quanto aquela a que assistiu na sua visita ao Tourist Landmark of the Resistance, museu dirigido pela milícia xiita libanesa Hezbollah, passo importante na preparação do espectáculo Fatamorgana e do filme que lhe está associado.

Salomé Lamas quis visitar o museu num domingo, dia de excursões até Mleeta, a uma hora de Beirute, lugar escolhido para celebrar a retirada israelita do sul do Líbano em 2000, “um complexo moderno que celebra a única vitória do Hezbollah contra Israel” ostentando veículos e material militar capturados ao inimigo. Diante de um vídeo jubilatório retirado do YouTube e exibido num ecrã gigante, viu a multidão de telemóvel em riste registando a reacção eufórica às imagens, engrandecidas por música militar, com sons de disparos e trombetas a celebrar a resistência ao invasor. No final, gritos e aplausos que deixaram Salomé desconcertada.

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Cinzeiro com mapa da Palestina feito por jovens de um campo de refugiados aplicado sobre um mapa: uma das imagens recolhidas por Salomé Lamas na viagem ao Líbano para preparação do espectáculo Boris Levy

A visita ao museu do Hezbollah servia como completamento à ideia de eleger como elemento central de Fatamorgana o Hall of Fame, museu de cera de Beirute, símbolo, na verdade, de um interesse pelo Médio Oriente que Salomé trazia de trás, que começou a assaltá-la de forma mais vincada enquanto trabalhava na pós-produção da longa-metragem El Dorado XXI e encontrou no convite da BoCa, bienal de artes contemporâneas, pretexto para viajar até àquela zona e desencadear um processo pensado para o palco do Centro Cultural de Belém — mas que poderá também vir a ser um filme e/ou ramificar-se por várias instalações —, abordando questões e temáticas que reconhece serem transversais à sua obra. “Uma dessas questões”, concretiza, “é o interesse pela História — como é escrita, como nos afecta enquanto indivíduos, como selecciona, como cristaliza —, a que se juntam questões de para-ficção, plausibilidade e make believe como reflexo da sociedade contemporânea.”

Esse interesse pelo Médio Oriente foi ganhando também um corpo concreto quando, numa residência artística em Berlim, Salomé conheceu um realizador egípcio que documentara ao longo de sete anos a transformação do Cairo, em paralelo ao período em que, numa agremiação de cineastas, ajudou a pôr de pé uma pequena “cinemateca” privada, contornando a censura e as restrições ao cinema impostas localmente. Num par de visitas ao Cairo, em apresentação do filme Terra de Ninguém e para acompanhar uma mostra integral dos seus filmes, o contacto com esse grupo de realizadores escavou mais fundo esse interesse pela construção colectiva de uma memória histórica. Mas Salomé, como assume fazer com frequência, quis partir não do conhecimento, mas do desconhecimento.

“Não quero fazer obras didácticas”, diz em relação à postura que elege para com os temas que decide abordar, tendo percebido em Terra de Ninguém que o seu lugar não podia ser o de uma historiadora ou de uma jornalista. “Quero mostrar realidades e fazer outras pessoas pensar, mas os meus filmes não são filmes de campanha, não têm uma tese muito clara — além de não ser a pessoa certa para o fazer, porque seria muito prepotente da minha parte, acredito numa acção da inteligência. Há outras pessoas que são realmente agentes de mudança. E se a minha ideia fosse mudar a realidade da Rinconada [região no Peru onde filmou El Dorado XXI], não seria realizadora.” Daí que fale numa “transacção” que estabelece com as pessoas que filma. Chegada ao Peru, à Transnístria ou à entrevista a um mercenário em Terra de Ninguém, não lhe passa pela cabeça criar uma intimidade construída sobre uma amizade mais ou menos forjada. Ela apresenta a sua proposta; as pessoas abordadas aceitam ou não participar numa história que não controlam. Mas, para Salomé, a aceitação implica trabalhar em conjunto. Da mesma forma que, terminado o filme, passa a trabalhar em conjunto com o espectador “para tentar colocar mais questões sem resposta”. Com esta sua primeira criação para o palco do CCB (12 e 13 de Abril), as dinâmicas não são diferentes.

Coro de vozes dissonantes

Fatamorgana começa com aquilo a que Salomé Lamas chama um pré-prólogo, altura em que o espectador é elucidado sobre o que se vai passar, “quase como se fosse um manual de instruções”. E é importante que o haja porque a peça com que respondeu à encomenda da BoCa para criar um espectáculo de acordo com a natureza multidisciplinar da bienal dirigida por John Romão decorre em vários planos, num jorro constante de informação, em que uma actriz (Antónia Torrinha) dialoga com as vozes de várias figuras presentes no Hall of Fame (entre Bill Clinton, Muhammar Khadafi, Yasser Arafat, Rei Abdullah, George Bush, Hosni Mubarak e outros representantes políticos e religiosos do mundo ocidental e do mundo árabe). Hanan, assim se chama a mulher libanesa que Salomé faz delongar-se no interior do Hall of Fame após a hora de encerramento, à espera — tal como Penélope ou Molly Bloom — de um marido que não chega nem chegará, começa por falar com Mohammed Saeed al-Sahhaf, ministro da Informação iraquiano por alturas da segunda Guerra do Golfo, por ouvir um excerto de um discurso de Arafat nas Nações Unidas ou George W. Bush a anunciar a captura de Saddam Hussein.

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Gruta de Jeita, a maior caverna do mundo, um dos locais assinalados no texto de Fatamorgana Boris Levy

Hanan está rodeada por um coro de vozes dissonantes, uma polifonia desarmónica, uma avalanche de informação que é em tudo semelhante à forma torrencial como nos chega hoje em dia, de todos os lados, com visões e versões contraditórias, abastecendo-nos de factos que tanto servem para clarificar como para tornar tudo cada vez mais turvo e incompreensível. Cada vez mais cansada, Hanan vai tendo dificuldade em identificar a linha que separa realpolitik de política, democracia de autocracia. A prioridade para o texto encomendado à escritora e jornalista Isabel Ramos exigia que não houvesse dedos apontados, nada de bons a trajar um branco imaculado e maus despenteados, desdentados e mascarrados de preto — “Isso é para crianças nas histórias infantis”, desconsidera a cineasta. “A ideia era tentar equilibrar um bocadinho os três pólos que ali estão representados: os Estados Unidos, o Mundo Árabe e a Europa / Rússia.”

Cinco actrizes libanesas

Quando deparamos com Hanan, ela não é uma mulher vazia que vemos na sua eterna espera apesar de o marido insistir para que não saia de casa sozinha, largada no palco sem um passado a que nos possamos agarrar. Antes do seu surgimento, no prólogo que sucede às instruções iniciais, Salomé Lamas projecta filmagens do casting para o filme que há-de ser, baseado nas mesmas premissas do que Fatamorgana. Salomé fala com cinco actrizes libanesas sobre as suas experiências de vida, sobre a sua relação com o texto, sobre as diferentes visões geopolíticas com que teriam de contracenar, no caso de virem a tornar-se Hanan frente às câmaras. “Além de todas elas terem histórias de infância duríssimas”, relata, “todas conhecem uma Hanan, uma mãe cujo filho se encontra desaparecido ou numa situação semelhante, todas têm experiência de trabalho no estrangeiro e viveram como emigrantes.”

Assim, se Hanan tem a cabeça ocupada por várias vozes dos habitantes do Hall of Fame, a sua própria existência deixa de ter apenas uma espessura individual, passa a carregar a história de uma mulher para quem a experiência de participação numa reunião em Paris em que foi convidada a votar numa decisão comum foi até então a sua única relação com um processo democrático, uma mulher que estudava nos Estados Unidos quando se deu o 11 de Setembro e não conseguia perceber nessa mesma manhã a necessidade colectiva de falar sobre o sucedido quando a sua casa destruída em miúda nunca fora motivo de discussão, uma outra mulher que confessa amar o seu país apesar de o saber baseado “em mentiras e em bandidos”.

Saturação ou subtracção

Fatamorgana é um espectáculo palavroso, chamando à cena citações reais ou ficcionadas, jogando com uma metáfora que Salomé Lamas usa com recorrência para explicar o seu labor: “partimos da realidade e estamos a criar uma parede de tijolos, mas se retirarmos um ou dois tijolos ficcionais a parede desmorona-se — precisamos deles para acreditarmos”. Interessada pelos limites e as fronteiras desfocadas entre esses dois campos, e pela transição entre facto e fabricação, sabe que essa é uma discussão sobretudo para entreter académicos. E cita o brilhantismo dos livros de Kapuscinski, lembrando os críticos que o acusavam de relatar acontecimentos falseados e de se colocar impossivelmente em vários sítios ao mesmo tempo. “Mas lê-se aquilo como jornalismo romanceado e funciona”, contrapõe. Os factos fantasiados podem, por vezes, ser mais verdadeiros do que a verdade, argumenta.

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Museus e locais destinados a reconstituições históricas e exaltação da História libanesa Boris Levy
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Boris Levy

Quando entra no Hall of Fame e ouve o avatar de Bill Clinton resumir-se à humilhante negação de assédio sexual enquanto os grandes líderes árabes proferem discursos inflamados e de libertação do jugo ocidental, Salomé sabe o quanto a verdade, não deixando de ser a verdade, é facilmente alvo de manipulação para construir uma história parcelar e enviesada. Esse jogo de poder entre quem propõe e quem recebe está sempre presente nas suas propostas, tentando torná-lo visível aos olhos do espectador para que as suas intenções sejam claras — “não escondo as cartas”, garante. É por isso que coloca a sua voz off em Terra de Ninguém, é por isso que contextualiza Fatamorgana com um pré-prólogo, assumindo a responsabilidade de “explicar como tudo foi engendrado”.

De facto, o posicionamento perante a verdade (em letra minúscula, sempre, sem sentido definitivo) é uma constante na sua obra. Em El Dorado XXI sabe bem que “podia ter filmado a miséria daquele lugar”. Mas há também uma verdade que, podendo tornar-se pornográfica, prefere recusar e conservar a salvo de uma sujidade que em nada ajuda nem enobrece os seus temas. Até porque este violento caudal de informação que jorra no palco do CCB é tanto sintoma dos dias que vivemos quanto a ausência de imagens de guerra em Terra de Ninguém ou o longo “plano sensorial” de 57 minutos com que arranca El Dorado XXI. Seja pela saturação ou pela subtracção, Salomé convida-nos a ver para além do que nos mostra.

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