A poesia, essa ocupação inocente

Luís Filipe Castro Mendes é um poeta para quem as questões da poesia e da sua história, encaradas com gravidade ou de maneira lúdica, são o principal motor da sua escrita.

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Luís Filipe Castro Mendes constrói uma “conversa” poética em que, como é de esperar, são as questões da poesia que estão em jogo dr

Toda a poesia de Luís Filipe Castro Mendes, desde Recados (1983) até ao recente Outro Ulisses Regressa a Casa poderia ser colocada sob o signo das palavras de Hölderlin, numa carta onde o poeta alemão fala da poesia como a “ocupação mais inocente”. Castro Mendes move-se no interior dessa inocência poética, que significa afinal um elevado grau de consciência da realidade e um modo de habitar o mundo. Nada do que diz respeito à poesia e à sua história lhe é estranho, e essa cultura foi a matéria fundamental de que sempre foram feitos os seus poemas. A relação com o mundo é predominantemente mediada por uma reflexão sobre a própria poesia: as suas formas, a sua história, os seus limites e ambições, as suas implicações na visão do mundo e na relação com a vida.

Estamos assim num terreno que se afasta das premissas de qualquer realismo, mesmo quando convoca referências da realidade. Abundam, por exemplo, as referências autobiográficas, mas não no registo mais directo da autobiografia. Mesmo num livro como Lendas da Índia (2011), que nasceu da estadia do poeta na Índia, durante os anos em que aí esteve como embaixador, está longe das inclinações mais óbvias do registo autobiográfico.

Dir-se-ia que Luís Filipe Castro Mendes construiu na sua obra a imagem de um poeta que tem muito de tard venu, alguém que chegou demasiado tarde e escreve num horizonte do encantamento poético antigo (e que, às vezes recorre às formas fixas que lhe correspondem, nomeadamente o soneto), mas com a total consciência do seu tempo e da relação conflituosa que a poesia tem com ele. É um tard venu que sabe muito bem que nada pode ser restaurado. Mas pode, pelo menos, ser evocado e invocado: as suas figuras de invocação são os poetas fortes da história da poesia (por exemplo, Rilke, um poeta onde é muita nítida uma consciência quase trágica da dilaceração entre a modernidade e o absoluto da poesia romântica). Daí, o tom predominantemente elegíaco de grande parte da sua poesia, que é de facto uma poesia da perda e da melancolia: das perdas fantasmáticas e das perdas reais, pela morte dos próximos. E, por isso, ela aproxima-se com frequência de um lirismo que recupera a antiga relação da poesia com a música. Modos de Música (1996) e Outras Canções (1998) são, aliás, títulos de dois dos seus livros.

Se a poesia de Luís Filipe Castro Mendes tivesse persistido nesse caminho, teria chegado a um estado de exasperação e teria caído num formalismo e numa saturação de referências poéticas. Mas ele fez algumas inflexões com bons resultados. Introduziu a dissonância onde havia excesso de música e colocou-se num terreno menos abstracto e menos obcecado com a própria poesia. Lendas da Índia, A Misericórdia dos Mercados e o seu mais recente livro seguiram por caminhos muito mais refrescantes, mas que não são propriamente rupturas. Um título como A Misericórdia dos Mercados pode parecer uma inclinação acentuada para uma poesia de tema realista e social. Mas essa matéria é elaborada de uma maneira que o título não deixa adivinhar, e acaba por ser mais uma vez a questão da poesia e dos seus ideais – a poesia em tempos sombrios – que emerge com mais força no livro. Não se trata de esteticismo nem de questões eruditas de poética, mas da política da poesia, no sentido mais próprio e actual.

Importa dizer que, a meio do seu percurso, Luís Filipe Castro Mendes publicou um romance, Correspondência Secreta (1995), que tinha como personagens figuras históricas do século XVIII, com destaque para a Marquesa de Alorna. Também aí, a música e a poesia, assim como toda a teatralidade amorosa do século XVIII, constituem os temas e os motivos deste romance que, formalmente, também é muito um romance do século da libertinagem amorosa e intelectual. Há nele um investimento lúdico que a poesia também integra com frequência. O prazer da frivolidade e do “jogo de fazer versos” emerge às vezes de maneira muito consciente na obra deste poeta.

O seu último livro tem no título um grande mito da nossa cultura. Ulisses é o heróis do nostos, do regresso arquetípico a casa. A par da melancolia, agora é a nostalgia a grande tonalidade afectiva da primeira parte do livro. Aí encontramos uma “Lisboa Revisitada”: “Perdem as casa suas várias cores/ e as barcas novas aguardam melhor maré,/ à falta de vento./ Deixámo-nos ficar?// Há uma nau que nunca regressou./ Essa será a nossa”.

Repare-se nas rede de evocações deste poema: Pessoa, Fiama Hasse Pais Brandão, a poesia trovadoresca de João Zorro. Mas o tom fortemente elegíaco da primeira parte do livro e as afecções que lhe correspondem encontram um contrabalanço muito interessante numa parte final, um conjunto de poemas que põem em cena (a expressão justifica-se porque há aqui um jogo dramático) um Senhor Poeta e um Senhor Kappus.

Ora, Franz Xaver Kappus é nada mais nada menos do que o “jovem poeta” que pediu conselhos a Rilke porque estava a  fazer “tentativas” para ser poeta. Rilke respondeu-lhe por carta e essas cartas foram editadas mais de vinte anos depois, em 1929, precisamente pelo aspirante a poeta, Franz Xaver Kappus: são as Cartas a Um Jovem Poeta (das quais acaba de sair uma nova tradução de José Miranda Justo, numa edição bilingue da Antígona).

Luís Filipe Castro Mendes constrói uma “conversa” poética em que, como é de esperar, são as questões da poesia que estão em jogo. E, na verdade, é de um jogo que aqui se trata,  em que a poesia é “a mais inocente das ocupações”, mais uma vez. O jogo compreende um confronto entre dois poetas com concepções diferentes e dispostos a entrar em polémica. Não são personagens cheias de gravidade (como era  Rilke).

Pelo contrário, têm uma dimensão de comediantes e, de certo modo, representam uma comédia da poesia (onde, aliás reconhecemos confrontos e tensões actuais). São irónicos, às vezes cómicos, e trazem para o plano das conversas mundanas a discussão sobre a poesia: “Fugir a si próprio, senhor Kappus,/ pode assumir modos completamente diferentes/ e até a histeria autobiográfica/ pode não ser mais que uma fuga. Lembre-se disso/ antes de falar da sua infância, adolescência/ ou desinteressante vida adulta. Os tempos,/ como vê, não estão para causas/ e os poetas passaram de legisladores da Humanidade/ a criaturas que cultivam para a galeria o desprezo de si próprios [...]”.  

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