A panaceia dos tempos modernos ou a impotência da razão

Sobre Os Humores Artificiais, de Gabriel Abrantes.

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O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do segundo Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.

Tudo tem um propósito meticuloso nos filmes de Gabriel Abrantes. Os Humores Artificiais, o filme a concurso na presente edição do Curtas Vila do Conde, provoca as barreiras da linguagem e da comunicação, e o sentido prático com que se revestem esses conceitos num mundo globalizado direccionado para o capitalismo e para a lógica do consumo. Essa lógica é universal e pode ter expressão em vários domínios da humanidade e do mundo moderno.

Ironicamente, a paisagem idílica inicial é o cenário natural do Parque Indígena do Xingu, no Brasil, artificialmente construído em 1961, com o sentido cínico de preservar uma cultura indígena tal como imaginada pelo governo e pelos arquitectos e engenheiros contratados para o efeito. Este é o mote para o filme, que fala da possibilidade de manipulação e controlo de processos neurocorticais complexos, tais como o amor e o humor, e de como o primeiro pode ser impiedosamente descartado, num mundo em que as emoções são superficialmente construídas e facilmente alcançadas através das novas tecnologias acessíveis nos nossos dias. O segundo pode ser considerado uma panaceia dos tempos modernos: o humor observado como ferramenta de resolução de problemas e de produtividade, ferramenta de educação e de fortalecimento dos laços sociais.

O humor, que parece um fenómeno espontâneo, é escrito e programado, como ferramenta manipulativa, para causar um bem-estar cínico às pessoas. O humor que seduz e permeabiliza o espectador é aqui objecto de investigação científica – universo do qual Abrantes parece ser um exímio conhecedor, ao citar Ludwig Wittgenstein, filósofo que dizia que um bom e sério trabalho filosófico poderia ser escrito integralmente com piadas e que os grandes problemas da humanidade, perante a impotência da razão, poderiam ser enfrentados recorrendo ao humor.

No fundo, Os Humores Artificiais aborda o grande véu de hipocrisia que reveste a sociedade actual. Esta acaba por ser vítima de si própria, por perder o sentido crítico sobre as coisas. Abrantes parece ter denunciado o algoritmo para a felicidade, utilizando de forma irónica e subversiva os próprios elementos que a compõem. Constrói um novo substrato para um ensaio filosófico, seguindo a lógica do que o preocupa como artista, em continuidade com o que testemunhámos em trabalhos prévios, como A History of Mutual Respect (2010) ou Fratelli (2011).

Texto editado por Jorge Mourinha 

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