A Paixão segundo Carlos J. Pessoa

Para comemorar os seus 25 anos, o Teatro da Garagem imaginou um espectáculo inspirado pelas regras das redes sociais. Em Teatro Twitter, o passado e o presente da companhia encontram-se numa cascata.

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Passado e presente cruzam-se em Teatro Twitter através das presenças às vezes apenas virtuais de actores que fazem parte da história da companhia

Há uma cascata em Teatro Twitter. Uma queda de água artificial, com imagens de actores projectadas sobre essa tela aquosa, a que Carlos J. Pessoa, dramaturgo e encenador há 25 anos por trás e à frente do Teatro da Garagem, chama o seu Rosebud. Assim como em O Mundo a Seus Pés Orson Welles colocava Charles Foster Kane no leito de morte a suspirar pela inscrição num trenó resgatado a uma memória de infância, também Pessoa deu por si seduzido pela hipótese de colocar uma cascata em cena – “é baratinho, mas sobretudo engenhoso”, diz. “Quando a água começa a escorrer, aquilo para mim é tudo, é a minha vida toda”, acrescenta.

A cascata, no palco do espectáculo com que o Teatro da Garagem comemora, até 7 de Dezembro, no Teatro Taborda, em Lisboa, os seus 25 anos, surge como símbolo de um fluxo contínuo, de uma história ininterrupta da companhia, de uma memória simples de um tempo feliz e descomplicado. “Tinha cinco ou seis anos e o meu avô levava-me todas as noites a ver uma pequena cascata, ao pé de Seteais, em Sintra. Ele parava o carro e eu ficava a olhar para aquilo deslumbrado. E agora, de súbito, está a acontecer aqui no teatro.” Ao perceber essa ressonância passada, esse frondoso jorro emocional, Carlos J. Pessoa mandou colocar no Facebook do Teatro da Garagem: “Este é o meu Rosebud.”

Não é por acaso que o Facebook entra nesta história. Teatro Twitter usurpa os códigos de comunicação das redes sociais e tenta inventar uma peça nesse espaço, expandindo a linguagem teatral até à fronteira com essa inevitabilidade quotidiana. A partir da ideia de comemoração do 25.º aniversário da companhia fundada por Carlos J. Pessoa em 1989, aquilo a que em palco se assiste é “um ponto de situação”, que, sendo teatro, convoca uma série de outras expressões, próprias da natureza aglutinadora das redes sociais que querem o mais possível parecer-se com (ou mesmo superar) a vida. “O teatro é o nosso ADN primeiro”, explica Pessoa, “mas isto também é imagens em movimento, também é fotografia, é pintura, é arquitectura.” Essa é também uma forma de sublinhar o “aqui e agora” que Carlos J. Pessoa entende ser vital à identidade da Garagem. O imperioso chamamento do presente é então sugerido pela “evolução tecnológica e pela vulgarização de meios técnicos que permitem que este espectáculo seja possível para uma pequena companhia.” Assim, baratinha mas engenhosa, uma cascata em palco, os actores projectados sobre ela e o homem da Garagem a confessar-se emocionado com o que ali se passa: “Há cenas aqui que me comovem à brava.”

Uma dessas cenas é aquela em que a actriz Sílvia Filipe, cujo percurso inicial se fez na Garagem, ensina o Ave Verum Corpus, de Mozart, a Beatriz Pessoa, filha do encenador. É um dos mais óbvios momentos em que Teatro Twitter tece um diálogo com o passado. A cena explica-se pelo regresso a um tempo, há quase 20 anos, em que a companhia realizou um pequeno estágio no antigo sanatório da Serra da Estrela; ali se faziam internar, nas décadas de 40 e 50, os trabalhadores tuberculosos da CP – e no meio de um cenário que incluía neve a intrometer-se no interior do edifício e fichas médicas dos antigos doentes a boiarem em pequenos lençóis de água, Sílvia Filipe desatou a cantar Ave Verum, enquanto Beatriz, acabada de nascer, por ali andava, de colo em colo. “Há aqui uma ideia de legado, a ideia de que na arte não estamos apenas a fazer mas também a dar, a transmitir”, justifica Pessoa, que para além de Sílvia Filipe conta ainda em Teatro Twitter com participações de gente como Jorge Andrade, Filipe Duarte ou Carla Bolito, João Didelet ou José Peixoto, todos parte da história da companhia.

De A a Z

Apenas num ponto o Teatro da Garagem parece querer contrariar abertamente as redes sociais. Adquirindo uma forma que poderia ser partilhada digitalmente sem precisar de um palco, a companhia quis que Teatro Twitter traísse a sua inspiração ao pedir que o seu público se encontre de facto, se junte numa mesma sala do Teatro Taborda, recusando a mera existência virtual. Contudo, a mimetização dos códigos das redes sociais é mesmo assumida como “a regra de ouro”, prendendo-se não apenas com a convocação de imagens, sons e comentários para o palco, mas também com a linguagem – por vezes “de uma banalidade propositada” – e com a própria construção da peça, quase inteiramente projectada numa tela (ou na cascata) em curtos segmentos protagonizados por dezenas de actores do presente ou do passado da Garagem. Como se fossem pequenos vídeos partilhados de forma avulsa num qualquer feed, mostram-nos episódios desconcertantes: um homem que se queixa de ter perdido o paladar e de que agora tudo lhe sabe a bacalhau com natas, duas personagens que apenas querem saber da agricultura hidropónica e a comentam com “altamente” e “swell”, ou um filão de máximas como “não me pisem no chão se fizerem de mim merda” atiradas (salvo seja) para o ar. Cravejados de um absurdo a que Pessoa não costuma virar a cara, os vídeos obedecem, ainda assim, a uma organização metódica, a uma progressão pensada como uma sequência enciclopédica – uma sequência de A a Z, indisponível para quaisquer alterações.

São esses blocos, essas etapas, que Carlos J. Pessoa vê como tweets, uma sequência de cenas a que correspondem “uma pulsação e uma desocultação do mundo”. Cenas que, no íntimo do encenador, lhe sugerem os passos de uma paixão – daquelas que Bach concebeu musicalmente, dedicadas à representação do sofrimento e da morte de Cristo segundo os evangelhos de vários apóstolos. Por isso, Teatro Twitter arrasta uma morte consigo, “para que todos os tweets adquiram o sentido de uma compaixão”. “Mas não é uma morte heróica”, frisa o director da Garagem, “é apenas uma morte. Só que a morte é inevitável para a fraternidade – que é fundamental mas também o desígnio mais difícil e exigente das revoluções – adquirir sentido. Se tivesse de encontrar uma unidade nisto seria uma paixão. A Paixão segundo Carlos Pessoa.” E ri-se, surpreendendo-se com solenidade que vem fincada em tal intenção. “É um disparate, mas é o que me ocorre.”

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