Jards Macalé é um acontecimento

Produziu obras-primas na década de 70 mas era difícil, pouco comercial e o Brasil não quis saber mais dele. Toca hoje em Amarante, dia 25 actua na galeria ZDB, em Lisboa, e por fim, a 27, é a vez da Casa de Música, no Porto. Isto é um acontecimento.

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O guitarrista de Transa, de Caetano, era ele... Toca hoje em Amarante, festival MIMO, dia 25 na galeria ZDB, em Lisboa; a 27, é a vez da Casa de Música, Porto Ariel Martini

Era uma espécie de ritual de passagem para aqueles que nasceram entre 1975 e 1965 e deram por si a apreciar a música que não encontrava lugar nos hertz das Renascenças e das Comerciais: chegava o dia em que os ouvidos se aventuravam fora do mundo anglo-saxónico, especificamente o momento em que se punha as mãos em Transa, de Caetano Veloso. Passemos ao lado da ironia que é tratar-se de um disco gravado no exílio, em Londres, da ironia que é tratar-se de um disco profundamente anglófilo: Transa, adorar o Transa que Caetano rejeitou e depois readoptou, significava que já não se era apenas um moço da pop adolescente. Pegar no vinil antigo, pôr a agulha e umas faixas à frente Caetano naquela elegia tremenda à vida, a cantar: “Nine out of Ten movie stars make me cry/I’m alive”

Isto deve ter sido coisa valente no Brasil, naquela altura em que se dizia que homem não chora não, e ouvíamos isto sentindo que éramos transportados para um homem anterior à civilização da democracia. O meu momento preferido desse disco, como diria o poeta Bruno Aleixo, “é dois”: ou Caetano cantando “Meu pai dormia em cama/ minha mãe em pisador”; ou então este, quando depois da primeira volta Nine out of ten Caetano grita: “Bora, Macau”.

Não era poesia nem política, era a ordem para entrar a visceralidade: e de seguida entra um solo de guitarra danado, alucinado, psicadélico, parece que não acaba, ponte improvável entre a roça e Portobello Road: o coração fechava-se e abria mais depressa e para nós, uns putos sortudos que podíamos crescer em democracia, era como se tivéssemos acabado de fazer a mesmíssima viagem que Caetano foi obrigado a fazer, só que nos escassos minutos da canção, nos escassos segundos do solo.

O guitarrista do disco era Jards Macalé e quem seria aquele Macau? Ao telefone com Jards ele disse: “Ué, Macau sou eu”.

O tempo todo a resposta estava ali e eu sem dar por ela, burrinho, burrinho de todo, bons ouvidos mas burrinho.

“Quando ele grita 'Vai, Macau', o Macau sou eu, de Macalé sintetizava para Macau, carinhosamente. Na hora dos meus solos ele gritava isso. Fiz os arranjos junto com o Caetano – esse disco misturou tudo. O meu ídolo do rock era Hendrix. No disco do Transa tá bem claro isso, coisas brasileiríssimas com uma levada pop, como a gente chamava”.

Jards Macalé toca hoje em Amarante, no festival MIMO, no dia 25 actua na galeria ZDB, em Lisboa; e por fim, a 27, é a vez da Casa de Música, no Porto. Acresce dizer que em Amarante serão exibidos dois filmes sobre Jards: dia 22 será a vez de Jards, filme de Eryc Rocha (filho de Glauber) e no dia seguinte Tira os Óculos e Recolhe o Homem, que conta a prisão de Jards (a frase é dita pelo polícia que o prende)..

Pode dar-se o caso de não se terem apercebido que isto é um acontecimento, mas é: pelo menos para todos os que ouviram Jards Macalé, o seu disco homónimo de 1972, ou o louco Aprender a Nadar (de 1974) ou Contrastes (de 1977). Num mundo justo haveria agora uma valente corrida às bilheteiras; mas o mundo não foi justo com Jards. Até podemos dizer que também não foi justo com Belchior (é preciso escutar Alucinação) ou com Sérgio Sampaio (autor do óptimo Tem Que Acontecer) mas certamente não foi com Jards, capaz de ir à folk psicadélica e à salsa super-luxuosa no intervalo de uma canção.

O bêbado do violão e Dorival

Jards Macalé nasceu no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, em circunstâncias excepcionalmente favoráveis ao desenvolvimento de uma sensibilidade musical. O pai, que era militar, tinha, contra o que os clichés costumam dizer, laivos de artista e “tocava o acordeão todas as noites”; apreciava ópera e música clássica e costumava levar Jards ao Theatro Municipal, quando Macalé ainda era pequeno. A mãe “tocava piano intuitivamente, de ouvido”. Era assim dentro de portas – mas também havia as casas do lado.

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Jards nasceu em 1943 e era vizinho do cantor Vicente Celestino, que apesar de já ser uma estrela “ainda vivia ali. Era um dos maiores cantores populares da época e vivia colado a minha casa”, conta Jards, como se ainda se espantasse com o facto. Para que não faltasse nada, “atrás tinha o morro dos Macacos, onde estavam todas as escolas de samba”. Musicalmente isto resultava “numa grande mistura”, que apelava ao pequeno Macalé. As noites eram passadas “a ouvir muita rádio” ou então em convívio com os vizinhos: “Tinha uns saraus em casa de quem tinha piano, cantávamos todos juntos.

Claro que isto apenas serve para despertar o interesse de uma criança para a música. De modo a que ela se torne um compositor de mão cheia é preciso mais que isso; nomeadamente um alcoólico a encarreirá-lo.

A história remonta a quando Jards tinha 15 anos – a primeira vez que pegou numa guitarra. “Me mudei para Ipanema e aprendi violão com um professor em casa da minha vizinha. A minha vizinha tinha um professor de violão; quando ele ia lá dar a aula ela deixava a porta aberta e eu ouvia. Eu ficava na fresta vendo-a aprender violão. Depois eu pedia-lhe o violão emprestado e aprendi assim. Aprendi como voyeur”.

Mas como Jards não tinha violão para tocar, o seu crescimento enquanto guitarrista estava dependente da boa vontade da vizinha. “Até que um dia, na rua, passou um bêbedo com um violão. Ele tava duro e propôs-me vender-me o violão para comprar álcool. Daí eu dizer que meu primeiro violão foi um violão bêbedo”.

Em compensação o seu primeiro professor de violão foi Jayme Thomás Florence, que também deu aulas a Baden Powell. A sua imersão na música foi total – e a sua sorte idem, visto ter-se cruzado com alguns dos melhores músicos brasileiros da sua época. Entre eles, Dori Caymi, filho de Dorival Caymi, “tudo pessoal do quarteirão”. Nesta altura já Jards era Macalé – Macalé é alcunha ou, por outra, era o nome do pior jogador do Flamengo. Digamos que as qualidades futebolísticas de Jards eram inversamente proporcionais às suas habilidades futeboleiras.

Dorival era o responsável pela direcção e arranjos do musical Opinião, estreado em 1964 e considerado um marco da resistêncial cultural à ditadura. Um ano depois, por indicação de Dorival, em cuja casa Jards conheceu João Gilberto, Jards estreou-se profissionalmente, substituindo um guitarrista do musical. Na mesma altura Maria Bethânia também se estreou.

Nos quatro anos seguintes foi cimentando a reputação como músico, até que em 1969 a sua participação no IV Festival Internacional da Canção redundou num valente escândalo, que hoje pode até dar-nos vontade de rir. “O clima em 1969 era muito conservador”, explica Jards. “Eu e Capinan nos apresentámos com Gotham City, em que havia uma mistura de guitarras eléctricas e violão; visualmente ele se apresentou com uma bata colorida, os músicos com colares. Foi uma apresentação mais teatral, e diante daquela gente mais conservadora criou-se um escândalo. Havia uma ala que não gostava que o rock entrasse no Brasil. Essa ala se sentiu ameaçada com a entrada das guitarras eléctricas, porque achavam que o samba seria extinto. Era uma briga” .

O escândalo teve uma vantagem: deu nome a Jards Macalé. Maria Bethância gravou músicas suas e depois Jards foi para Londres gravar Transa com Caetano; quando voltou gravou Jards Macalé. “Gravei com Tito Moreno, que tocou no Transa. Fizemos uma coisa bem livre, com essa estética, também vinda do jazz”. A influência de Transa nota-se no disco e a experimentação manteve-se ao longo de todos estes anos – mesmo um disco como Real Grandeza, de 2005, é, para todos os efeitos, pouco convencional.

Em toda década de 1970 Jards está em altíssimo nível, e no entanto não conheceu o sucesso, pelo menos não na dimensão que os seus colegas da época atingiram. Ele vive bem com isso, tem uma explicação lógica para o escasso número de vezes em que mencionam o seu nome: “Acontece que na época o tipo de música que eu fazia...não havia mercado grande para isso, nem interesse das gravadoras. Então não só eu como outros, o Luiz Melodia, por exemplo, o nsso tipo de música não era mercante [comercial]. Havia essa dificuldade. Ficou esse vácuo. Gravava um disco e levava anos para gravar outro. Havia um conflito entre o que eu pensava que um músico era e o que as gravadoras queriam”.

Em resumo: “As pessoas me respeitavam mas achavam uma pessoa difícil no trato”. Em parte porque estava indisposto “com a coisa política no Brasil”. O disco Direitos Humanos resume o espectáculo com o mesmo nome, de 1973; “Me propus fazer um espectáculo em auto-benefício, também para denunciar a questão dos direitos autorais no Brasil. Convidei o Chico Buarque, Edu Lobo, Gonzaguinha. Terminado o espectáculo, a sala estava completamente cercada pela polícia e só não nos bateram porque a ONU estava ali”.

O Brasil vivia “uma ditadura muito violenta”, ele perdeu “um pouco a vontade de fazer discos”, ficou “menos entusiasmado, mais voltado a fazer shows, arranjos, escrever para outros”. Quando os anos 1980 chegaram ele “já era carta fora do baralho”, pelo menos em nome próprio. “E aí a indústria muda, se torna comercial. E aí até surgem grupos de rock que fazem muito sucesso no Brasil, rock cantado em brasileiro. Mas eu já estava fora”.

O tempo passou; e “em algum momento”, desde 2000 para cá, Jards começou “a tomar o gosto de voltar a dar concertos, de voltar a tocar em festivais”. Foi a algumas apresentações em Berlim, foi a Paris e Barcelona, “mas nada com muito rigor”. Agora, ele anda “com vonatde de dar um passeio, por assim dizer”. Quem quer fazer-lhe companhia?

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