A moralina franciscana

Uma regra de prudência, de boa educação e até de racionalidade deveria inibir-me de me intrometer pela segunda ou terceira vez no discurso de um político do tipo intelectual chamado Francisco Assis. Mas foi tamanho o recitativo a que fui submetido, enquanto leitor de jornais, no final da semana passada, que preciso de fazer um exercício terapêutico contra as ondas de tagarelice vindas desse lado.

Cedo a uma debilidade que tenho de confessar: sempre que o leio, fico tão obcecado com a conformidade do seu discurso a uma tipologia que sou invadido por ondas de reacção hostil, como fascinado se declarava Flaubert pelo ódio que sentia contra a estupidez – a bêtise – da sua época.

Outros, parece que muitos outros, criticam em Francisco Assis a sua vocação de ortopedista, a sua inclinação irredutível para recentrar ou mesmo endireitar a Esquerda. Esses caricaturam-no como um ideólogo de síntese entre a ordem justa e justamente a ordem. Se ele se situa no centro justo que é justamente o centro, se segue os caminhos já bem sinalizados de uma Esquerda de Direita ou aponta as vias de uma Direita de Esquerda, tudo isso me é indiferente e até me provoca algum tédio porque não vejo aí nenhuma potencialidade benéfica ou maléfica, nada que esteja à altura de uma ideia política para o nosso tempo.

Mas já a questão intelectual interessa-me bastante. E a questão intelectual, como a política, também tem a sua topologia, e é com base nela que podemos definir o tipo do político intelectual do centro-centro, aquele que é capaz de girar sem fim em torno de si mesmo sem mudar de lugar. Esse lugar é o de um pensamento que volteja até se imobilizar na nulidade e no vazio. A receita adivinha-se mal começamos a lê-lo.

O político intelectual procede através de grandes conceitos: ele é a “razão na sua versão ocidental”, ele é a “a ideia de progresso”, ele é o Iluminismo. Trata-se de um processo que consiste em insuflar grandes palavras e conceitos, de modo a inchar demagogicamente o discurso. Mas quando os olhamos de perto, os grandes conceitos reduzem-se a significações pindéricas.

Um exemplo: na sua última crónica, falando do dirigente da Fenprof, escrevia Francisco Assis que a “grosseria alarve” de Mário Nogueira “permanece demasiado viva na memória colectiva”. O conceito de “memória colectiva” soa bem, confere uma certa distinção. Mas a verdade é que, mesmo quem nunca leu o sociólogo Maurice Halbwachs, que introduziu o conceito, sabe que memória colectiva não é o mesmo que uma memória que é partilhada por um conjunto alargado de pessoas; e nem sequer é o mesmo que memória histórica. A memória colectiva não se define por analogia com a memória individual, trata-se antes de uma memória que tem um cunho cultural e social, feita de representações sedimentadas através de símbolos, de ritos, de tradições.

As grosserias de Mário Nogueira elevadas a objecto de uma memória colectiva (e ao serviço de uma martirologia que não dispensa a referência ao Gulag: o político intelectual está sempre próximo das vítimas da história, por mais distantes que elas estejam, está sempre a mortificar qualquer coisa) é tão cómico e tão nulo como dizer – outra pérola de Francisco Assis neste fim-de-semana – que  o facto de estarmos integrados na zona euro “é um elemento constitutivo da nossa identidade nacional mais profunda”.  A zona euro rima com “identidade nacional” e, ainda por cima “mais profunda”? No idiolecto intelectual de Francisco Assis a rima é o tráfico de grandes palavras e conceitos. Quando a política está em baixo, é a moralina franciscana que fica em alta.

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