A minha guerra

Com as cartas que o alferes miliciano António Lobo Antunes enviou de Angola à mulher, que estava grávida, em Lisboa, Ivo Ferreira faz a sua guerra. Isto é: procura a sua personagem. Isto é: encontra o seu muito singular filme.

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Cartas da Guerra é um objecto bastante singular e delicado. Ivo Ferreira faz a sua guerra. Isto é: procura a sua personagem. Isto é: encontra o seu filme Miguel Manso

António Lobo Antunes, os seus anos em Angola como alferes miliciano, as cartas que escreveu, entre Julho de 1971 e Janeiro de 1973, à então mulher Maria José, que estava grávida em Lisboa, e que foram reunidas em Deste Viver Aqui Neste Papel Descripto: Cartas de Guerra, livro publicado em 2005 pelas filhas de ambos, Maria José e Joana, satisfazendo o pedido da mãe antes de morrer vítima de cancro... poderia haver projecto cinematográfico mais cheio de armadilhas? Veja-se: personagem intimidante ainda viva; os guardiões de um património familiar vigilantes – as cartas revelam a intimidade, os anseios e angústias e o efeito da guerra no então psiquiatra de 28 anos; o período em Angola foi tempo de formação do escritor, da consciência política do homem; ainda, a máquina de cinema, e as suas fragilidades e desastres, a transferir-se para África para recriar. Mas eis que o que aí vem, com estreia marcada para a próxima quinta-feira, Cartas da Guerra, de Ivo Ferreira, é um objecto bastante singular e delicado. Ivo faz a sua guerra. Isto é: procura a sua personagem. Isto é: encontra o seu filme.

Não sabemos se há um momento específico a partir do qual o realizador começa a pensar “eu quero que isto seja um filme” ou “isto vai ser um filme”. No caso de Cartas da Guerra, pensou num corpo de um actor, para interpretar António Lobo Antunes, ou pensou numa voz?
Pensei primeiro numa voz. Há uma história que já é relativamente conhecida, a história da Margarida [Vila Nova, actriz, mulher do realizador] estar a ler o livro para o bebé que estava na barriga. A minha questão era sempre esta ideia de como é que se conta uma história, e os problemas e as responsabilidades que isso traz. À partida o tema da guerra é uma história cheia de histórias, histórias da História. De repente passou então a haver uma certa simplicidade em tudo isto. Ela lia para um bebé, contava uma história. E foi com esse conforto num texto desconfortante que achei que, mais do que uma história para contar, havia um filme para fazer. Não era só por ter começado nessa voz. Eu disse ao Sandro [Aguilar, montador] e ao Luís [Urbano, produtor] há uns anos que a voz seria dela, mas só ela aparecer já era... inicialmente as pessoas estavam contra que a voz aparecesse... Parecia desconfortável para toda a gente e fui adiando a questão, até que já na montagem o Sandro perguntou o que me passava pela cabeça. A única coisa que me passava pela cabeça é que o corpo do filme, a imagem do filme, fosse a voz. Agrada-me a ideia de alguém estar a escrever e alguém estar a ouvir. É como se houvesse um contágio, que o amor pudesse... quase como se um pudesse ouvir o que o outro está a pensar. Às vezes para mim a voz feminina é dele. É quase como uma personagem intermédia. Isto é como vejo a voz, mas não quero vender esse peixe a ninguém.

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Cedo no filme esquecemos que a personagem, que se chama António, é o escritor António Lobo Antunes. Não passamos um filme a tentar, como num biopic, saber se ela corresponde a quem a inspirou. E depois há a sensação de que a voz vai ganhando o seu próprio corpo, como a personagem. Quando Cartas da Guerra acaba a figura está completa... para começar qualquer coisa. O final é triunfante mesmo, há algo que se afirma. Como chegou àquele corpo específico, porquê aquele actor?
A presença física, o lado comportamental... interessa-me mais como um actor anda. O trabalho não foi psicologista. Foi simples. Vi o Miguel [Nunes, intérprete de António] fumar um cigarro e achei que podia usar aquilo. Havia um medo meu, pavor, com a história da História de Portugal, mais o lado biográfico.

Estava tudo já muito contado?
Sim, e o perigo era perder o filme na história do Lobo Antunes ou na História de Portugal. Esse era o lado mais perigoso. O preto e branco veio nesse sentido, criar um filtro que nos libertasse, que permitisse procurar um lugar, um corpo para o filme. E depois queria que fosse um filme muito meu, muito vivo.

Quando li pela primeira vez o argumento à Zé e à Joana Lobo Antunes [filhas de António Lobo Antunes, responsáveis pela edição de Deste Viver Aqui Neste Papel Descripto: Cartas de Guerra] ao telefone, elas perguntaram-me como é que eu sabia que o pai quando escreve organiza os cigarros na mesa. Vi isso em casa dele. Fui lá a casa, ele levantava-se, “Como está?”, e lá estavam os cigarros organizados. Este tipo de coisas interessam-me mais do que outras que interessam a outras pessoas. Se parto de um molde tenho mais dificuldade em que ele cresça, em que ele viva. Mas uma coisa era evidente: ele tinha de ser bonito e ter os olhos claros. Uma vez o António Lobo Antunes – é verdade que era muito bonito quando jovem, e ainda é –, com a Fotobiografia da Tereza Coelho na mão, disse-me, apontando uma foto: “Diga-me como é que vai arranjar alguém tão bonito quanto este”. E não é só o bonito, é um lado rebuscado. Uma vez eu disse ao Miguel: “Um exercício bom para ti é comeres uma sandes de queijo durante duas horas.” Quando fiz as entrevistas às pessoas [durante a pesquisa para o argumento], havia um gajo com uma sandes de queijo durante duas horas na mão. Como é que é possível comer uma sandes de queijo em duas horas? Trabalhei esse tipo de coisas.

Se alguém usa cigarros assim, se alguém anda assim... Não parto de uma concepção psicológica. Parto de um gesto que para mim vai acabar por querer dizer uma certa coisa. Essa é que é a minha personagem.

Neste caso, é uma personagem muito individual, muito singular e que se torna colectiva.
No princípio ele é quase confundido com os outros. No início, com a música, há uma coisa de coro grego muito forte. Mas também posso ser eu o coro: eu, o Sandro e a malta toda que está com aquelas agonias. A ideia era essa, que fossem todos um coro.

Que se confundissem?
Sim e depois íamos descobrindo-os.

Para os actores, houve exercícios, houve questões físicas, e se não estávamos a tentar imitar todas as pronúncias, também houve a questão das pronúncias. Houve um casting por todo o país. Era importante corpos diferentes. A fisicalidade, a idade, a forma da cara, os gestos.,. Um gajo que sobe para um Unimog tem de subir para um Unimog e a primeira vez que se subiu para um Unimog com uma G3 foi uma palhaçada impressionante. “Não há problema nenhum. Tens aqui uma aulinha e sobes e desces 40 vezes e passadas 40 vezes qualquer um de nós sobe fazer isso.” Houve esse lado, sim.

Outras coisas que me interessavam: há um exercício dos comandos em que eles se arrastam pela lama, entram dentro de água sem fazer barulho, não pode cair um pingo na água. Isso interessa-me: gajos a entrarem dentro de água, caladinhos, vão ter depois de sair de dentro de água, e até vão ter de tirar a água que está atrás das botas para não fazer barulho. Tinha estes gajos todos juntos duas horas a pensar nisto e eu a olhar para eles. Assim já estamos a brincar a várias coisas ao mesmo tempo. Isto também tem de servir para nos divertir, senão é insuportável. Para já é assim que me interessa trabalhar.

Esta sensação de que há um momento em que esquecemos a biografia, que aquele tipo é o António Lobo Antunes quando novo: isso foi claro logo, que não ia filmar a biografia ou um pedaço da biografia de uma figura que existe e está viva?
Sim. Foi muito importante estar com os camaradas de guerra, para a construção do argumento e tudo. E também foi importante ir à minha vida. Foi importante a investigação e sair dela e deixar de ter a presença regular com eles. Porque é um filme e é o meu filme – e isto não é uma coisa de pila.

Numa conversa durante as filmagens falava da vontade de encontrar um “como é que conto esta história”. Foi descobrindo com as filmagens, através de tentativa e erro?

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Há ideias que vêm do princípio outras que se descobrem. Houve coisas muito boas num processo horroroso, porque houve coisas horríveis. Nunca sabia se no dia seguinte ia filmar. Precisava de dois carros e não sabia se ia ter só um ou nenhum. No sítio onde estava, em Angola, a produção não conseguia garantir isso, porque ali nunca se sabe o que acontece. Precisava de uma granada atirada para a água e de um crocodilo. Há uma palanca e uns peixes que depois vêm ao de cima de água. E de repente não há palanca, não há crocodilo e já só peço os peixes. E os peixes, conseguem?

Estou a contar isto não para me queixar da produção, porque as condições eram essas e era para se fazer este filme, se não fossem seria outro filme. Foi uma coisa que tivemos de assumir. Não houve outro remédio. Foi um desastre. Mas viam-se as filmagens ao final do dia e percebia-se que algo estava a acontecer. Depois do sofrimento todo, e já cá, chegámos à sala de montagem e de repente o pesadelo tinha acabado. Foi fantástico. O filme estava ali de alguma forma. Previa-se um coro, a voz e de repente parecia que aquilo tinha lá estado desde sempre. Eu e o Sandro damo-nos bem. Foi a parte boa [a montagem]. Foi super-rápido depois de um processo de cinco anos a agonizar. O dinheiro do ICA que vinha e que não vinha... O facto de ter sido tudo bloqueado foi horrível, criou uma relação estranha com o cinema. Mudei, fui viver para a China... Todo o processo do filme foi muito pesado.

O filme resolveu-se na montagem?
Não foi o filme. Eu é que me resolvi na montagem. É estranho. Tal como a questão da memória da guerra com todos os traumas que ficam, esta foi a minha guerra. Foi duro, muito cruel, difícil e também foi intenso. Costumo dizer que não dormi durante um ano. Por isso se calhar também já estou a ficar como os senhores que vieram da guerra.

Encontrou um actor. Mesmo querendo fazer um filme que não fosse um biopic, havia uma figura viva, havia as filhas, havia guardiões de um certo património, até simbólico. O que é preciso fazer, para negociar ou sossegar as pessoas, sobre o que se filma e o que não se filma?
Sinceramente, o filme só existe por haver uma grande confiança por parte das irmãs Lobo Antunes. Porquê essa confiança? Já li muitas entrevistas das irmãs e do Luís [Urbano] sobre como tudo isto começou e é tudo mentira (risos).

Como é que foi?
Eu estava com isto na cabeça há algum tempo e tinha falado com José Mena Abrantes, que também é assessor do José Eduardo dos Santos [Presidente de Angola], e é uma pessoa maravilhosa que há 30 anos está num teatro que não tem luz, e perguntei-lhe se dava para ir lá [a Angola]. Eu não sou assim tão jeitoso como realizador para ir filmar para o Montijo e pôr umas árvores recortadas a fingir que é África. Acho óptimo que os outros façam, mas não consigo nem tenho interesse em fazer isso. É o contacto com as coisas que me dá vontade de as filmar. Eu só faria isto se fosse filmar a Angola...

Precisava do sítio...
Sim. Não é só o que fica na imagem, é forma como olho para as coisas. Quando fui apresentar o Águas Mil (longa-metragem de 2009) a Nuremberga o Luís [Urbano] ligou-me a dizer que um projecto que tínhamos ficara em terceiro lugar no concurso. Saí à rua, fui fumar, estava a nevar. Pedi uma daquelas imperiais pequeninas alemãs... A fumar um cigarrinho e a pensar na vida e ligar à Zé [Lobo Antunes]. “Tenho uma coisa para te perguntar rapidamente: podia adaptar as Cartas?”. Ela respondeu que nem pensar, e depois: “Não sei, só se fosses tu”. E depois outra vez: “Não sei”. Foi então que falei com as manas. Antes ainda falei com o Luís, uma espécie de despedimento, em termos da ordem dos concursos. Eu ia mudar de projecto, tinha acabado de escrever outro filme. Achou-me maluco, mas contei-lhe a ideia que tinha para o filme, a estrutura.

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Disse às manas que não ia estar a escrever seis meses – no caso foram quatro e tal mas 18 horas por dia – se à partida fosse para dizer que não. Acho que só consegui porque a Joana tinha um bebé pequenino que estava a chorar enquanto eu lhe estava a explicar, peguei no bebé, continuei a falar com ele no braço e ele calou-se. Ainda hoje acho que a Joana deve ter pensado: “Se o gajo consegue calar o bebé...” Parte de uma questão de confiança, se calhar como qualquer relação ou negócio. Eu disse-lhes que não fazia autocensura. Vou dar um exemplo: o António assiste a uma violação na casa de banho. Se se começar a pensar nisto, isso faz dele quase um cúmplice. Podiam dizer-me: “Não vás por aí...” O tipo de combinação era uma questão de confiança. O processo foi gerido de parte a parte com elegância. Como disse, não faço autocensura, mas havia uma coisa que era importante: que fosse como no amor, bom para todos. Fui acusado por um jornal de ter tratado muito bem os soldados, que o filme não era suficientemente politizado. Estou-me a borrifar para essa conversa. Isto é uma história de vítimas. De ambos os lados é de uma imensa crueldade.

E António Lobo Antunes, sentiu a presença dele?
Há um material que já existe, cartas que foram escritas numa grande intimidade por uma pessoa e têm um destinatário. Não foram cartas que encontrei...

Havia um livro publicado...
Sim, por desejo de todos. Havia esse material, com descrições, sexuais inclusive, estávamos a trabalhar na intimidade de personagens que estão vivas e estas coisas pertencem ao mundo dos mortos – perdoem a expressão. Mas sempre achei que isto ia correr bem.

Isso de se fazer um filme sobre alguém que está vivo só por si já é singular em Portugal. Noutras cinematografias é quase lugar comum, algo acontece e filma-se. Aqui não, geralmente os filmes são coisas de mortos, da memória, temos medo dos vivos. Até que ponto essa presença se sentiu? Intimida?
Os mortos são interlocutores mais fáceis. Não era propriamente fazer um filme sobre o Luiz Pacheco ou o Cesariny... o Herberto Helder também devia se bonito... Mas sim, intimida, ainda por cima sendo uma personagem forte... além de ser um escritor magnífico, é uma personagem que faz parte da sociedade portuguesa, é muito presente, permanentemente em entrevistas. Criou uma personagem dele próprio, muito forte, muito específica. Se pensarmos nos silêncios ensurdecedores de que ele fala, parece que “há silêncios ensurdecedores” em tudo, “palavras que caem para o chão”.

No início de conversa falávamos que a personagem se ia soltando da figura Lobo Antunes, criando o seu próprio corpo...
Na página 343 das Cartas da Guerra, há uma carta central. Estamos a falar de uma personagem de uma certa burguesia lisboeta, intelectual, que vai para a guerra porque... porque não se diz que não e porque a ideia de se pirar para França nem faz parte do universo... Casa-se a correr, tem uma mulher grávida para deixar o testemunho, e a grande preocupação dele é onde vai ficar o retrato do Joyce na nova casa. No contacto com África – e quando digo África é a paisagem, são as pessoas – e com aqueles homens com quem nunca estaria na vida, vai surgindo o forjar de uma identidade política. E o que me interessou também foi isso. O que acontece é que ele diz: “Não posso continuar como vivi até agora”. Isso é sobre a política e sobre a vida. Esse corpo de que falam é um corpo porque apesar de tudo há uma dimensão psicológica da personagem que vai crescendo.

Ganha uma dimensão política e literária.
Sim, isso é maravilhoso. Ele cresce como escritor, cresce como homem.

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Miguel Manso

Nas sequências finais há uma figura que se agiganta, e ganha corpo: a presença tem qualquer coisa de diáfano, no início, alguém que não se compromete, não se afirma. Mas depois há uma superação.
Não me interessava que o filme fosse uma visão antropológica do António sobre os colegas. A malta que vinha da província não tinha formação, havia imensos perigos de ficar uma coisa do intelectual a olhar para os outros de cima. A ideia era ver como é que este corpo podia caminhar passo a passo com os outros. Há um drama colectivo que reivindica o drama do próprio país. Fizemos parte do filme com aquele número de personagens. Era um filme que não dava para ser mais pequeno em termos de produção. Havia um lado coral, senão seriam apenas problemas do indivíduo.

António Lobo Antunes tem escrito sobre este tema da Guerra Colonial e, para escrever o argumento, foi ler essa obra...
Edgar Medina, que escreveu o argumento comigo, é uma pessoa com quem partilho o tipo de processo formal. As Cartas da Guerra são a estrela polar, o livro em que o argumento se baseia. Evidentemente tivemos de ir beber a muitas outras coisas, entre elas Memória de Elefante, Os Cus de Judas. Eu queria muitas cenas pequenas, uma coisa quase partida como as memórias, como as próprias cartas que passam de uma ideia para outra e falam de uma coisa e de outra. Em vez de ter muitas cenas com sequências longas, ter várias coisas retalhadas. Fomos a esses livros para construir peças com esse material e com as crónicas. E também outros materiais para a iconografia, e entrevistas às pessoas que estiveram com ele lá. Conheço pessoas que estão lá, no filme. Precisei deles, foram importantíssimos em todo este processo. No princípio super-desconfiados, passadas umas horas já havia confiança. Foi uma relação especial, da qual depois tive de me afastar.

Achei que ia dizer: “precisei muito deles para depois os ignorar”. Precisou deles para as personagens, mas depois precisou de os ignorar para fazer outra coisa que não um registo de experiência biográfica.
Sim.

Os romances e as crónicas: foi à procura de quê?
Há um lado para o qual acho que é super-prático: o décor. Fomos buscar fotografias da guerra e tal, a casa, o que fizemos foi o que achámos que aquilo era. E sabíamos lá o que aquilo era! O que tem graça é chegar a um matagal, haver um rio com uma ponte partida e alguém dizer que o quartel é para ser ali, ao lado daquela aldeia do outro lado do rio. “Ali? Tens um rio e uma ponte partida! Como queres levar toneladas de coisas para ali?”. Faz-se a ponte e fez-se. Chama-se a população toda e faz-se a ponte. O que tem graça é estes homens agora verem aquelas imagens e dizerem que era mesmo aquilo.

Reconstrói a ponte e filma a reconstrução da ponte...
Que estava no argumento, escrita. Eu não sou nada místico, mas não sei responder à pergunta de como encontrei a ponte partida. Encontrei porque procurámos. E com teimosia. Era uma aldeia que tinha de estar colada ao quartel. Para mim era esta ideia, a certa altura, de sublinhar que todos fazem parte da mesma massa e da mesma tragédia, a população local e eles. Não sei se essa proximidade da população se sente no filme, mas são ideias da minha cabeça. Procurou-se isso e encontrou-se. O rio, a ponte partida, tinha o horizonte.

Viu filmes de guerra?
Vi um com aquele tipo de joelhos no chão...

Platoon [1986, Oliver Stone]
Vi o Platoon. Vi O Coração das Trevas [Hearts of Darkness, a Fimmaker’s Apocalypse, documentário de Fax Bahr, George Hickenlooper e Eleanor Coppola sobre a rodagem de Apocalypse Now, de Francis Coppola]. Lembro-me de ver isso no King [em Lisboa] quando era puto. Não conheço muitos filmes de guerra, não é muito o meu género. Vi alguns mais para tentar ver escalas, dimensões. Para mim é mais estimulante ir à dança do que ir ao cinema para pensar em cinema. Ainda vi com o João Ribeiro [director de fotografia] fotografias, pinturas. E há aqueles filmes péssimos que são óptimos de ver. Por exemplo, aquele da Pocahontas, do [Terrence] Malick, como se chama?

O Novo Mundo [2005]...
Sim. Aquilo não passa pela cabeça de ninguém, mas no meio daquela confusão toda tem coisas do caraças.

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No livro não conhecemos a mulher a não ser pelas pistas que António nos dá, mas no filme a voz é a da mulher que recebe as cartas: é como se o estivéssemos a conhecer através dela

Mas há um filme do Malick para o qual este remete...
The Thin Red Line [A Barreira Invisível]?

Sim.
Pois. Disseram-me assim: “Há filmes de que não podes falar”, não podia falar do The Thin Red Line nem do Tabu [Miguel Gomes, 2012]. Mas porquê?

Mais do que Tabu, a “família” do filme é The Thin Red Line. Mas percebe-se que se fale no Tabu.
Mas porque? Por ser a preto e branco?

Por ser a preto e branco, por África, pela voz-off, pela mesma produtora, O Som e a Fúria. Não acredito que em nenhum momento não tenha pensado nessa contaminação...
Então acredite. O filme foi feito em quatro meses, mas foi mais tarde, com a coisa do preto e branco, que essa questão se levantou mais, antes não se tinha levantado.

Inicialmente não era preto e branco?
Nem a preto e branco nem a cor. Ninguém tem nada que saber como é que vou fazer o filme.

Eu tenho um... (silêncio) sou um bocadinho daltónico. Nunca assumi isto. Noutro dia tive de ir fazer um teste para a carta de condução. Quando se tem mais de 40 anos é preciso fazer um teste para renovar a carta... tenho problemas de daltonismo. Eu sei as cores, só que não as identifico bem. Mas a questão até nem foi essa. Mais do que tudo foi uma libertação. Eu estava cansado.

Começou o filme e tudo era uma impossibilidade. A equipa esteve em Lisboa presa para ir para Angola... vai não vai. Depois esteve presa em território angolano. Não sabia se o filme ia acontecer, mesmo depois de parte da equipa já estar em África. Tudo foi difícil, cansativo. O facto de estar cansado, tirar a cor ajudava... depois o view finder que o João Ribeiro utiliza também é a preto e branco, ele não compõe a cores, ele enquadra a preto e branco. Claro que trabalha a cor e é super-chique, todos os dias tinha uns tifs com uma correcção de cor, mas ele enquadra a preto e branco. Aprendi a fazer uma aldrabice para pôr aquilo a preto e branco no computador e ver assim o material e no segundo dia disse-lhe que não sabia como é que iria pôr cor – além disso não tinha graça nenhuma um gajo estar a falar que a terra é vermelha e aparecer na imagem a terra vermelha. Quando se fala das cores de África, das fardas verdes... são coisas de que até gostava muito no texto mas se fosse a cores seriam uma estupidez, porque ele está a descrever a quem não vê cor. Na montagem, a decisão assumida no segundo dia de rodagem foi concretizada. Mas era sobretudo a questão do filtro, mais um filtro em relação à história do Lobo Antunes. Era um perigo aquilo tornar-se uma coisa em que tudo era igual. Eram os olhos que são iguais, o caraças! Era o meu filme, acabou-se.

Quis o azul dos olhos de Lobo Antunes e depois apagou-o...
Sim. Mas não foi com malícia.

Partiu das cartas escritas por um alferes miliciano a uma mulher... Essas cartas foram publicadas e tornaram-se literatura, lemo-las enquanto tal. Nas cartas não conhecemos essa mulher a não ser pelas pistas que ele nos dá, mas no filme a voz é a da mulher que recebe as cartas. É a voz dele através dela, é como se o estivéssemos a conhecer através dela, da maneira como ela o lê nas cartas...
É precisamente isso. Se fosse a voz dele, aquilo ficava cheio de autopiedade, reduzia o interesse. Não me passa pela cabeça ter este filme com a voz dele.

Nunca passou?
Não. Não quer dizer que não tenhamos chegado a uma altura em que considerámos essa hipótese, mas não. Isto não é uma coisa panfletária, mas este é um dos maiores dramas da nossa história contemporânea. Quando se está a investigar, quando se está perto deste assunto, não é só o drama das crianças que foram para lá empurradas... é também o das mães, das mulheres, dos irmãos. E há muito silêncio sobre isto. Com o 25 de Abril atirou-se tudo para o caixote do fascismo, incluindo a guerra. Foi um tema maltratado, certamente com justificações, estávamos no princípio da democracia e não havia tempo para o fazer. Estes homens vieram tão modificados desta experiência traumática... Era a agonia de uma Nação, coisa que me interessou imenso. E perceber que estes homens não falam com as mulheres sobre o assunto. Muitos deles acharam que eu não devia mexer nisto. “Nunca ninguém fala da puta da guerra, muito menos na guerra”. Eles falam às vezes nos almoços quando vão fumar um cigarro lá fora, se não estiver ninguém por perto. Esse silêncio, que por um lado foi contextualizado pela questão histórico-política, explica-se talvez porque as pessoas não querem falar de coisas tão traumáticas como as que viveram na guerra. E porque o regresso é muito duro. Os suicídios aconteciam normalmente antes deles virem para Portugal, nunca numa situação de conflito.

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Miguel Manso

O traumatizado de guerra foi uma figura que apareceu em 1990 ou 1992. Como é que um gajo consegue esconder os seus traumas desta forma, silenciá-los, voluntária ou involuntariamente? E as mulheres! Agora que li algumas coisas sobre isso, as mulheres destes homens viram chegar pessoas que já não conheciam. Eles eram estranhos. Há um drama imenso.

Parte de uma história recente, mas não a viveu. Acede a ela através do relato de alguém, como uma tarefa que lhe é passada. No seu filme Águas Mil há um tipo da sua idade à procura da geração do pai, algo silenciado. O episódio da sua mulher a ler Cartas da Guerra faz aqui figura dessa passagem. Gostava que falasse disso, da importância da intimidade nessa transmissão.
Sou muito maricas, muito emocional com coisas mal resolvidas. Também sou uma besta. São coisas que, calculo, enquanto cresci me intrigaram imenso. Por exemplo, o tema do filme que hei-de fazer a seguir é as FP 25. Dizem-me “isso não”, como me disseram para este filme. Não estou a dizer que pego em coisas que mais ninguém pega. Mas talvez não se queira mexer muito nisto. São as coisas que estão a mudar o mundo que me interessam. Se calhar esta coisa de o país ter ido à falência pode ter ajudado. O que sinto quando falo com testemunhos deste tempo que ainda é próximo é que muitas pessoas que viveram isto estão a desaparecer. Se calhar é agora que podem falar sobre o assunto.

Trabalho sobre coisas que me interessa resolver. Não tenho problemas, daquelas questões graves, a resolver, nem sequer com o meu pai, mas há coisas que me acompanham. Eu não era nascido em 1971, só nasci em 1975, mas este tempo histórico à volta de mim interessa-me. Nunca me passou pela cabeça, há uns anos, fazer época e agora interessa-me porque estou faro da merda do IKEA e da Zara, e de estar toda a gente vestida de igual e do mundo ser todo igual à novela e ao telejornal. E a atenção das equipas é diferente quando se faz época até anos 80. Não tenho TV e não gosto dessa coisa de toda a gente com a mesma roupinha. Há temas na nossa História recente que me interessam para os perceber melhor, para me dedicar algum tempo a investigar, para poder vivê-los, porque não os vivi. Quando era puto estava lixado porque não tinha vivido o 25 de Abril! Eu não tive aquela fase do desportista, passei de adolescente parvo para parvo intelectual de esquerda, e ficava ofendidíssimo por não poder discutir aquelas coisas que ouvia os mais velhos discutir, a política, a nouvelle vague. Se calhar é uma maneira de viver coisas que não vivi e que me lembro de ouvir falar. Interessa-me muito esse trabalho da construção da memória.

E voltamos ao que é hoje a memória de um homem mas que na altura não era memória, era escrita sobre o presente. Parte dessa memória para construir...
A minha própria memória. Crio outra memória a partir dessa.

António Lobo Antunes viu o filme?
(pausa) Aqueles são os anos mais sensíveis da vida dele. A tradutora alemã dele diz que se ele não tivesse ido para a guerra não escreveria assim. Por outro lado estamos a falar do grande amor da sua vida, uma história louca e essa pessoa desapareceu da sua intimidade. Não vou dizer que não me interessa que ele veja ou não. O que desejo profundamente é que ele tenha a relação com o filme que queira ter.

Mas já viu?
Diz que não consegue. Talvez um dia sim. Se ele quiser ver vou ter prazer em falar com ele sobre o assunto. Mas quero que viva isso como quiser. Percebi que não estava muito à vontade. Falámos, falámos sobre a guerra, sobre outras coisas. E muitos silêncios, grandes cigarradas em silêncio. Mas nunca falámos sobe o filme. Ele às vezes está a falar de uma história que aconteceu e digo-lhe que está no filme. Ele fica admirado, “como é que sabe?”. Está lá, está na Memória de Elefante. Ele também não tinha lido Cartas da Guerra.

E já leu?
Parece que poderá dar uma vista de olhos em edições em outras línguas. Lá está, é a história do preto e branco, para criar um filtro.

 

Notícia corrigida: Foi corrigida a ortografia na palavra miliciano

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