O passado não é passado: é um cavalo-de-batalha

Na sequência do impacto do seu Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, Joana Craveiro e o Teatro do Vestido regressam ao imenso espólio sobre a ditadura em Portugal para uma exposição-performance no Teatro São Luiz. Mesmo ali ao lado da antiga sede da PIDE-DGS.

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FÁBIO AUGUSTO
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Joana Craveiro, anuncia a própria ao seu público escolar no final de uma sessão de Quando o Museu Vivo se Torna Físico, planeia apresentar-se vestida de arquivista quando defender a sua tese de doutoramento em Inglaterra, em Janeiro de 2017. É um acto consequente. Desde que o Teatro do Vestido estreou a série de conferências Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, esgravatando e trazendo à superfície relatos de uma leitura pessoal (ou de várias, na verdade, que ajudam a compor a narrativa) através dos 48 anos de ditadura em Portugal, até à revolução de Abril e rumo aos agitados dias do PREC, esse é, de facto, o papel de que se investiu.

É também como arquivista que Joana Craveiro se apresenta aos espectadores deste Museu Vivo tornado físico, recheado de livros, jornais, toda a espécie de documentos que ajudam a olhar para os acontecimentos vividos a quente e não digeridos pela frieza dos anos passados ou do revisionismo histórico – o pior dos pesadelos para a autora de um espectáculo que se estreou no Negócio – ZdB, correu mundo, amealhou prémios e reclamou uma vida de transformação contínua. “Percebi muito cedo que o Museu Vivo era um espectáculo em progresso constante”, conta Craveiro ao PÚBLICO. “A reacção do público foi muito avassaladora para nós. Muitas pessoas vinham ter comigo no fim e queriam dar o seu testemunho, queriam que as entrevistasse e gravasse. Não tinha mais espaço no espectáculo, que era já bastante longo [4h30], mas continuei sempre a fazer o trabalho de recolha, na medida do possível.”

Este Quando o Museu Vivo se Torna Físico constrói-se também sobre as consequências directas do efeito emocional do espectáculo original. Se os testemunhos não pararam de se acumular, várias foram também as doações de todo o tipo de documentos (jornais, discos, livros, jogos de tabuleiro) que ocupam agora um novo lugar neste périplo que se desenvolve quase na totalidade nas catacumbas do Teatro São Luiz, em Lisboa, de 16 a 18 de Dezembro (todas as sessões, para grupos pequenos, já se encontram esgotadas). Esse impacto emocional, salienta Joana Craveiro, deve-se também ao momento da criação e da apresentação do primeiro espectáculo. “Acho que é muito importante ter sido construído ainda no tempo do anterior governo e da troika; parece-me que se criou um espaço de resistência em relação a esse período muito duro. As pessoas estavam muito deprimidas e o espectáculo, de certa forma, dava-lhes ânimo e recordava-as da capacidade de lutar.”

A mudança de contexto político, nota a artista, vislumbra-se hoje em factos como a recente condecoração de Salgueiro Maia pelo actual Presidente da República, “algo que não tinha sido feito pelo anterior e de que falava no Museu Vivo”. Agora, num dos primeiros momentos de Quando o Museu Vivo se Torna Físico, à entrada do São Luiz, na Rua António Maria Cardoso, a escassos metros da antiga sede da PIDE/DGS (actualmente um condomínio de luxo), Joana Craveiro recorda declarações à TSF de Óscar Cardoso, inspector-adjunto da polícia política do regime, um dos homens que estavam no edifício a 25 de Abril, quando os disparos sobre o povo revoltado causaram quatro mortes, e a quem o primeiro-ministro Cavaco Silva atribuiu, em 1989, uma polémica pensão por “serviços excepcionais ou relevantes prestados ao país”. Isto depois de ter negado a mesma pensão a Salgueiro Maia, o capitão de Abril responsável pela rendição de Marcelo Caetano no Quartel do Carmo.

A História a ganhar corpo e voz

Nos primeiros minutos de Quando o Museu Vivo se Torna Físico, Joana Craveiro convida o público a passar silenciosamente em frente à antiga sede da PIDE e a olhar os espaços que agora ocupam o rés-do-chão – uma loja de roupa, ateliers de design e de arquitectura –, fala da quase invisibilidade da placa que assinala o passado histórico daquele prédio e recorda a peça Villa, do autor chileno Guillermo Calderón, em que este coloca três mulheres a discutir o futuro da Villa Grimaldi, o maior centro de detenção e tortura da ditadura de Pinochet. “Elas estão exactamente a discutir no espectáculo aquilo que poderíamos ter discutido sobre esta sede”, diz ao PÚBLICO. “Nunca foi feita essa consulta e aquilo foi transformado unilateralmente no condomínio de luxo que é hoje. É o mote perfeito para aquilo que se passa aqui dentro.”

“Aqui dentro” é Joana Craveiro a referir-se à forma como os espaços menos visíveis do teatro são ocupados. O lema é, citando outro autor chileno da sua preferência, o documentarista Patricio Guzmán, não deixar definhar “a memória que herdámos e que constitui hoje quem somos”. E nada é mais intenso do que confrontar o público não apenas com documentos que são consultáveis, mas também com o relato vivo de Carlos, oficial do exército português mandado para a Guiné travar a Guerra Colonial, a História de repente a ganhar corpo e voz, a ter uma espessura que repentinamente baixa quaisquer defesas que ainda pudessem eventualmente restar depois de ouvidas descrições das torturas conduzidas pela PIDE a pessoas com nomes concretos, como Aurora Rodrigues.

Interessada em investigar e trabalhar “a reflexão sobre as políticas da memória – ou a sua ausência”, Joana Craveiro acredita tratar-se de “um cavalo-de-batalha que têm de ser os cidadãos a iniciar". Caso contrário, diz, "passa-se muito tempo, deixa de ser uma prioridade para os governos e passam a dizer-se coisas como ‘o passado é passado, temos é de ver os factos positivos’". Não faz sentido, insiste: "Tem de se transmitir a memória dos acontecimentos históricos, quanto mais não seja para que não se repitam."

Enquanto o Teatro do Vestido não consegue um espaço para que todo o imenso acervo documental relativo a este período da História de Portugal possa estar consultável, o Museu Vivo, nas suas múltiplas formas – em Março, no Centro Cultural de Belém, haverá uma versão para um público menos crescido –, continuará a lembrar e a responsabilizar. Se o Museu Vivo de Histórias Pequenas e Esquecidas terminava garantindo que não terminava, neste seu filho é também a geração seguinte que é chamada a pegar na memória e não a deixar dentro de livros bafientos ou comemorações poeirentas.

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