A importância de se chamar “pequeno objecto”

O trio de arquitectos e designers suecos Claesson Koivisto Rune criou uma colecção para contrariar o mercado e dois objectos são made in Portugal.

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Uma galeria de arte em Marfa, Texas, em homenagem ao minimalismo do artista plástico Donald Judd. Um centro cultural em Quioto, no Japão, com a sua fachada em filigrana inspirada na flor de cerejeira para filtrar a luz. As lojas da Louis Vuitton e da Gucci em Estocolmo. A residência do embaixador sueco em Berlim. Casas particulares por toda a Suécia — nomeadamente a da mais internacional artista sueca de vidro e cerâmica, Ingegerd Råman. A sede da Sony Music em Estocolmo. A lista poderia continuar sempre sob o chapéu de uma assinatura, que na verdade são três: Mårten Claesson, Eero Koivisto e Ola Rune

Numa sala do Nobis, um hotel de cinco estrelas no central bairro de Norrmalm, em Estocolmo, aparecem os três vestidos de preto, Ola num outfit que faz lembrar as linhas de Yamamoto, Mårten e Eero em versão mais desconstruída. Não é a disciplina da arquitectura que os traz ali, apesar de terem começado em 1995 por ser apenas “um atelier de arquitectos” antes de se lançarem no design — toda a decoração de interiores do Nobis é deles. Vêm falar sobre a experiência de desenhar pequenos objectos do dia-a-dia, numa produção contracorrente que fazem há dois anos com a colecção Smaller Objects. Contracorrente? “Inspirámo-nos em modelos de negócio da economia de partilha, como o Airbnb ou a Uber, que providenciam serviços directos aos interessados”, explica Eero, enquanto se queixa da constipação que não o larga há dias. Quer isto dizer que a colecção Smaller Objects permite aos designers envolvidos arrecadar 75% do valor da venda, ao contrário dos habituais 3 a 5%. São os próprios a vender as suas peças, sem envolvimento do mercado (www.smallerobjects.com). “O designer não desenha apenas. É parte envolvida em todo o processo. É empresário”, justifica Ola. Este ano trouxeram a perícia de amigos: Nendo, Jin Kuramoto, Ingegerd Råman, Luca Nichetto.

Entre estes pequenos objectos, dois são made in Portugal — os números em porcelana que usam o tipo de letra Stockholm e que foram inicialmente desenhados para as portas dos quartos do Nobis e os potes-vaso para flores de cheiro que vão buscar o nome a um dos álbuns de Simon & Garfunkel, Parsley, Sage, Rosemary and Thyme.

A conversa continuou depois, já ao telefone, com Mårten Claesson.

Tábuas Longboard
Bases para vela em cerâmica
Bases para copos em pedra-sabão
Bases para ervas de cheiro
Iluminação de exterior
Bases em aço de carbono
One happy cloud, as taças que Ingegerd Raman desenhou para um restaurante e agora são recuperadas para a colecção cerâmica
Bases em malha de poliéster
Fotogaleria
Tábuas Longboard

Na vossa obra, qual o papel de uma colecção como a Smaller Objects? É uma reacção a um tempo de maior austeridade?
Acima de tudo, é um projecto de paixão. Não será certamente para fazer carreira ou ganhar dinheiro. Depois de tantos anos a trabalhar para a indústria do design, há um lado de nós que sente a frustração de como o próprio sistema retrai uma certa categoria no design, no caso “pequenos objectos”. Podemos dizer que o problema reside na economia porque o contrato entre designer e mercado é sobretudo uma questão de royalties, que nunca chegam a tomar valores significativos neste universo de pequenas peças. Sei de muitos designers que estão “sentados” em cima de ideias que não vão poder realizar porque o sistema não lhes permite. Na verdade, às vezes começamos a fazer este tipo de objectos simplesmente para nós próprios, porque precisamos de alguma coisa nova lá para casa ou porque temos algum tempo livre. Sem o intuito de o comercializar. E sei que, à medida que estamos aqui a falar, há colegas e amigos meus, alguns dos melhores designers do mundo, que têm uma história igual para contar. Isso dá-nos algum conforto.

Fala de frustração. Pode explicar melhor?
Bem, só posso falar por mim. Não vemos por aí muitos bons objectos de design de reduzida escala. Ao contrário do que se passa com o mercado do mobiliário. E sei que nós, os designers, estamos em todos os momentos do processo do design. De facto, desenhamos este tipo de coisas. A colecção que apresentámos no ano passado foi uma maneira de trazer objectos nossos. Este ano, convidámos amigos, que já era a nossa ideia desde o início... mas digamos que o primeiro ano foi de experimentação e agora, sim, descolou.

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Marten Claesson (esq., na foto), Eero Koivisto (centro) e Ola Rune

Há uma necessidade de voltarmos ao saber-fazer da artesania?
Sou só um designer e arquitecto. Não consigo estar em controlo do mundo... É verdade que durante muito tempo se esqueceu a importância da manufactura. E também é verdade que aquilo que tenho visto nos últimos anos é todos procurarem a qualidade do que é feito à mão. Seja em Portugal ou em países muito tecnológicos e desenvolvidos como Japão e Suécia, onde seria uma fortuna fazer qualquer coisa à mão. Acho que o artesanato não morreu. Acho mesmo que vive um momento de revival.

Duas das peças são feitas em Portugal. O que vos levou a essa escolha?
A ajuda veio de uma amiga designer holandesa que está a viver em Madrid, a Marre Moerel. Ela tem trabalhado com as porcelanas portuguesas, a empresa NG Porcelanas, num projecto entre arte e design. Toda a gente sabe que os portugueses são bons com cerâmica.

Gostaria de ir ao vosso início. Como é que apareceu a Claesson Koivisto Rune? A culpa foi da cadeira lounge Bowie, que aliás se viu no Salão de Mobiliário?
Não será o nosso único produto lá [risos]. Mas na verdade não foi por causa da Bowie. Uns anos antes, já funcionávamos como gabinete de arquitectos, que aliás ainda somos. Nessa altura ainda nem tínhamos bem a certeza se iríamos também fazer trabalho de design ou sobretudo arquitectura. Mas fomos convidados a fazer o interior de uma loja, isto deve ter sido por volta de 1997, e precisávamos de uma cadeira lounge. O mercado não tinha nenhuma que se adaptasse ao conceito que queríamos. Por isso, desenhámo-la. E a David Design produziu e comercializou. Vem daí o nome Bowie, de David. Acabou por se tornar um clássico. E não teve nada que ver com David Bowie [que morreu a 11 de Janeiro]. Foi apenas um jogo de palavras — também fizemos um relógio de parede a que chamámos Camp, por causa de Camp David.

Começaram em 1995. Eram amigos e continuam a sê-lo. Discutem muito? Como gerem o vosso processo criativo?
Ah! Discutimos todos os dias, e muitas vezes por dia. Primeiro, tenho de dizer que desenhamos sempre juntos. Pode não seguir sempre o mesmo padrão, depende do projecto, mas sentamo-nos e pomo-nos a desenhar, cada um com os seus sketches, depois juntamo-los, discutimo-los. Mas 99% das vezes o processo criativo começa porque temos um problema que precisa de uma solução.

Como é que se dá o contágio criativo entre as duas disciplinas?
É uma ligação muito directa. Somos designers com uma perspectiva de arquitectos. Quer isto dizer que quando desenhamos uma peça de mobiliário já a vemos num espaço, não fica a flutuar no vazio.

Foram já considerados “modernistas da emoção”. Revêem-se nisso?
Os pós-modernistas e os desconstrutivistas tiveram um posicionamento crítico numa certa época. Criticavam a filosofia desumanizada em que o modernismo se tinha transformado. Para nós os três, não havia nada de errado com os conceitos originais do modernismo, mas precisávamos de trazer de volta a emoção. Isto é não é uma máquina, é poesia.

O vosso trabalho é poético?
Talvez eu tenha uma costela romântica [risos]. Mas isso não posso ser eu a julgar... Mas que tentamos, tentamos.

O design escandinavo, exportado com a premissa do encontro perfeito entre design e função, ainda é procurado num mundo mais globalizado e de produção em massa?
É certo que a função é essencial no nosso design. É o core da sociedade escandinava. No início, sabe que tentámos combater a ideia de sermos escandinavos?

Pode explicar isso melhor?
Não queríamos estar catalogados. Ambicionávamos ser designers do mundo. À medida que o tempo foi passando e as pessoas se dirigiam a nós para dizer “ah, vi esta vossa peça e percebe-se logo que é design escandinavo”, acho que desistimos. Não o fazemos com esse propósito, mas é isso que somos.

Está a falar de uma questão identitária?
Sim. Se bem que eu nem acredito em questões de identidade nacional. Acredito, isso sim, em qualidade. Claro que as circunstâncias e o ambiente onde somos educados e crescemos têm impacto no que fazemos. Mas isso não quer dizer que o nosso design seja melhor do que aquele é feito em Portugal ou na América.

Estúdio da designer sueca Ingegerd Raman (2002) DR
Edifício Sfera, centro cultural e galeria de arte em Quioto, Japão (2003) DR
Interiores do Sfera
Interior de apartamento
Galeria em Marfa, Texas: homenagem ao minimalismo do artista plástico Donald Judd
Interiores do hotel Nobis (2010)
Fotogaleria
Estúdio da designer sueca Ingegerd Raman (2002) DR

Nos últimos anos, a que mudanças assistiu no design e na arquitectura do Norte da Europa?
Acredito no casamento entre design e arquitectura. Mas na realidade são dois territórios distintos. Cada um tem o seu mercado, que nem sempre comunicam entre si tanto quanto eu gostaria. O design escandinavo está muito mais valorizado do que a nossa arquitectura. Tanto quanto sei, é precisamente o oposto do que se passa em Portugal, em que a arquitectura está nos píncaros.

Por que é que isso acontece?
Não sei explicar. Talvez tenha a ver com um momentum. Há indivíduos com um talento extraordinário e é isso que leva a que tal aconteça numa região ou noutra do mundo. Mais do que uma revolução, houve uma evolução no trabalho dos designers nórdicos, que estão agora num momento de pujança.
Quando era estudante de Arquitectura em Nova Iorque, em 1992, pedi ao meu professor preferido que me desse conselhos. E o que ele me disse foi: “Vai ver o trabalho do Álvaro Siza [Vieira]. Ele sabe como lidar com a noção de espaço.” Comecei a seguir o trabalho de Siza e acho que é um dos meus heróis. Está no meu top para os melhores arquitectos do nosso tempo. Seguido de Souto de Moura.

Diz isso porque está a falar para um jornal português.
[Risos] Despertei para a arquitectura aos 11 anos, por causa da Fallingwater [Casa da Cascata], do Frank Lloyd Wright. Aquilo accionou em mim tantas campainhas que deve ter começado aí o caminho que me fez chegar ao que sou hoje.
O Siza teve o mesmo tipo de efeito em mim, fez-me ver como o espaço é matéria escultural. A arquitectura é também muito forte no Japão, na Suíça.

Falou ainda há pouco de frustração. O que não gosta na sua profissão?
Adoro o que faço. Mas é verdade que há momentos em que me apercebo de que há uma falta de respeito e incompreensão por aquilo que é fazer bom design ou boa arquitectura. É que é mesmo um processo muito difícil, trabalhoso.

Isso é palpável como?
Não é propriamente uma ciência mensurável. Não é como ir ao médico e ele avaliar o que se passa de errado com a pessoa — confia-se nele e toma-se um comprimido. Na vida de um arquitecto, o cliente até pode argumentar que não gosta de vermelho, prefere o verde. Nisso, vejo uma falta de respeito.

Para alguém que comece agora na profissão, seja no design ou na arquitectura, como é que pode, ou consegue, fazer-se notado?
Isso não é uma questão de agora, sempre foi muito difícil. Temos mais designers, temos mais arquitectos, temos mais escolas. Competir é muito mais complicado. Mas só uma coisa é verdade: saber fazer boas coisas e saber fazê-las bem. Acredito na qualidade e esse é um valor que sobrevive de per se.
E mais, acho que é possível fazermos as nossas próprias coisas. Smaller Objects é um exemplo: a proposta é fazermos algo cuja produção não esteja dependente das grandes marcas de distribuição e comercialização. E vemos cada vez mais isso. Se calhar é aí que está a oportunidade para os jovens designers, serem empreendedores.

 

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