Deve a imagem de um homicídio premeditado ser a fotografia do ano?

Burhan Özbilici ia cobrir uma inauguração banal e acabou a fotografar o homem que assassinou o embaixador russo em Ancara. A imagem que correu mundo parece saída de uma peça de teatro e já na altura a sua publicação gerou controvérsia. Agora que ganhou o World Press Photo a discussão continua.

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A fotografia do ano da 60.ª edição do World Press Photo LUSA/Burhan Ozbilici/The Associated Press/WORLD PRESS PHOTO HANDOUT

Era um acontecimento rotineiro a que Burhan Özbilici não teria dado qualquer atenção se o clima político fosse outro – a Rússia e a Turquia começavam a reaproximar-se, com a guerra na Síria como pano de fundo, e a inauguração de uma exposição de fotógrafos russos na capital turca, com direito à presença do embaixador de Moscovo em Ancara, Andrei Karlov, passava a ter outro peso. O fotojornalista da Associated Press (AP) decidiu então cobrir a abertura, explica num texto que escreve no site da agência de notícias norte-americana, aproveitando o facto de a galeria ficar a caminho da sua casa, o que não lhe exigia desvios nem esforço. Estava longe de imaginar o que se seguiria.

Estávamos a 19 de Dezembro de 2016 e Andrei Karlov discursava já quando Mevlüt Mert Altintas, um jovem polícia à civil que supostamente ali estava para o proteger, o matou pelas costas, dirigindo em seguida à assistência uma série de frases em árabe: “Não se esqueçam da Síria! Não se esqueçam de Alepo!”, gritou, braço esquerdo erguido e dedo em riste, com o revólver que usara para alvejar o embaixador na mão direita, apontado a quem o ouvia. “Afastem-se! Só a morte me vai tirar daqui. Os que tiveram algum papel nesta opressão vão morrer, um a um.”

A intervenção do atirador pode seguir-se graças a um vídeo amador feito por um dos convidados, que inundou rapidamente as redes sociais e foi reproduzido por muitos órgãos de informação em todo o mundo, mas foi Burhan Özbilici quem fez as fotografias que fixaram o momento e que depois alimentaram o debate. Imagens como esta devem ser publicadas? São sensacionalismo ou notícia? Informam ou glorificam a violência, dando eco a um discurso extremista e servindo de incentivo a outros? São produto de um verdadeiro fotojornalismo ou apenas um rastilho que a imediata divulgação através da Internet, muitas vezes sem qualquer mediação ou enquadramento sério, pode levar a uma explosão descontrolada? A estas perguntas junta-se agora outra: o registo de um assassinato deve ser considerado a melhor fotografia do ano, escolhida entre mais de 80 mil imagens?

Ainda que a resposta a estas e outras perguntas seja complexa e passível de separar as águas, certo é que uma das imagens que Burhan Özbilici fez do embaixador russo morto aos pés de Mevlüt Mert Altintas lhe valeu esta segunda-feira o Prémio de Fotografia do Ano do World Press Photo 2017 (WPP), o maior concurso de fotojornalismo do mundo, assim como o primeiro lugar na categoria de Spot News Stories (Notícias Locais).

Para aqueles que já se manifestaram contra a publicação da imagem e a atribuição do prémio de Fotografia do Ano a Özbilici, como o próprio presidente do júri desta 60.ª edição do WPP, Stuart Franklin, não é sua a qualidade que está em causa, mas o impacto que pode vir a ter.

Num artigo de opinião no jornal britânico The Guardian, Franklin explica por que razões fez questão de votar contra a escolha desta imagem “de terror”, lembrando que é a terceira vez que a cobertura de um homicídio recebe o grande prémio do concurso criado em meados da década de 1950, sendo a mais famosa das anteriores a que mostra um alegado vietcongue a ser executado com um tiro na cabeça pelo chefe da polícia de Saigão, tirada pelo norte-americano Eddie Adams em 1968.

"É a fotografia de um homicídio, o assassino e a vítima, ambos na mesma imagem, e tão problemática de publicar como uma decapitação feita por terroristas", continua o fotógrafo, que não deixa de considerar merecido o prémio dado a Özbilici na categoria de Notícias Locais. O problema é que colocar esta fotografia num pedestal tão alto (o do grande prémio do concurso) é um convite àqueles que ponderam reproduzir este tipo de acontecimentos de grande espectacularidade e reafirma “a associação entre martírio e publicidade”: “Para ser claro, não defendo que o fotógrafo bem-intencionado deva ver ser-lhe negado o reconhecimento que merece, mas temo que estejamos a amplificar a mensagem do terrorista através da publicidade adicional que o prémio principal atrai”, resume Stuart Franklin, sublinhando que Özbilici fez o seu trabalho de forma “heróica” naquela galeria de Ancara. “O que é controverso é que uma imagem representando um homicídio premeditado, executado numa conferência de imprensa para garantir o máximo de visibilidade, seja a Fotografia do Ano do World Press Photo."

Imagem poderosa

Luís Vasconcelos, director do maior concurso de fotojornalismo português, o Estação Imagem, não tem dúvidas de que a fotografia de Burhan Özbilici deve ser publicada e, pelo que viu nas galerias do WPP de 2017, merece bem o prémio. “É uma imagem poderosa, não há como não dizer isto. E feita por um fotojornalista que achava que ia cobrir uma inauguração numa galeria, mas que esteve à altura do que ali se passou e que fez o que tinha de fazer”, defende em declarações ao PÚBLICO este fotógrafo que trabalhou na imprensa durante 40 anos.

É claro, diz Vasconcelos, que se pode rotular esta imagem como “sensacionalista” – muitos já o fizeram, incluindo a direcção do Expresso, que explicou as razões por trás da decisão de não publicar a fotografia de Özbilici – mas isso não lhe retira o valor noticioso e o peso do “testemunho”. “Há tantos assassinatos no mundo todos os dias. Este tornou-se próximo porque praticamente vimos a pessoa morrer em directo, sabemos como se chama. Isto muda as coisas do ponto de vista da percepção, mas não muda a sua essência”, acrescenta, chamando a atenção para o facto de diariamente se publicarem em todo o mundo imagens potencialmente mais chocantes do que esta, de crianças com fome, de refugiados, de vítimas da guerra. Imagens que provavelmente deveriam ficar por publicar.

Daniel Rocha, um dos editores de fotografia do PÚBLICO, concorda com Luís Vasconcelos: “É óbvio que esta imagem tem de se publicar, como se têm de publicar a do homem que se atira de uma das torres no 11 de Setembro, a da criança morta na praia [Aylan Kurdi, o pequeno sírio que em Setembro de 2015 foi arrastado para uma praia da estância balnear turca de Bodrum], ou, se quisermos recuar, as fotografias das crianças a fugirem de uma aldeia destruída por napalm no Vietname [Nick Ut, 1972] ou a do [Robert] Capa da morte do miliciano [Guerra Civil de Espanha, 1936]… Se nos chocam? Claro que sim, mas infelizmente também mostram que o mundo é um sítio perigoso para se estar.”

Para Daniel Rocha é importante reflectir sobre o poder de imagens como a do fotojornalista turco, mas o seu valor noticioso impõe-se. “Podemos discutir, mas não há aqui grande espaço para controvérsia – o fotógrafo estava lá para uma inauguração, uma coisa banal, e acabou por fazer aquelas fotografias. Podemos argumentar que o atirador contou com a exposição que uma conferência lhe dava, mas não podemos dizer que o fotógrafo contava com aquele homicídio. É a situação, a realidade, que é uma loucura, não é o mensageiro”, acrescenta, ressalvando que “mostrar a morte é sempre muito, muito complicado”, mas que isso não faz com que ela deixe de existir.

Luís Vasconcelos fez a cobertura dos Jogos Olímpicos de Los Angeles com Eddie Adams (1933-2004), o autor da célebre fotografia da execução em Saigão, e lembra-se bem de o norte-americano falar do quanto se sentia atormentado pela dúvida, questionando-se se teria sido a sua presença a levar o polícia a disparar. “Ele falava muitas vezes nesse assunto porque o preocupava – e é de preocupar. Mas, na realidade, nunca saberemos… Aqui é completamente diferente. O fotógrafo turco estava numa galeria, não estava numa cidade em guerra.”

O rosto do ódio

No texto que escreveu no site da Associated Press, o fotojornalista de 59 anos admitiu que demorou alguns segundos a aperceber-se do que acontecera – “um homem morreu à minha frente; uma vida desapareceu diante dos meus olhos” – e que depois, mesmo com medo, conseguiu colocar-se numa posição em que podia fotografá-lo, no meio do verdadeiro pandemónio que se instalara na galeria, com homens, mulheres e crianças a gritar, atirando-se para o chão e procurando proteger-se como podiam.

À medida que lhe vinham à memória os amigos e os colegas que tinham perdido a vida em zonas de combate, Özbilici fotografava. “Isto era o que eu estava a pensar: ‘Estou aqui. Mesmo que seja atingido e ferido, ou morto, sou jornalista. Tenho de fazer o meu trabalho. Podia fugir sem fazer quaisquer fotos… Mas não teria uma resposta decente para dar quando as pessoas mais tarde me perguntassem – Porque é que não tiraste fotografias?’.”

A “coragem” e o “sangue frio” demonstrados por Özbilici enquanto Mevlüt Mert Altintas disparava “pelo menos” oito vezes, matando o embaixador russo e ferindo outras três pessoas antes de ser abatido pelas autoridades, também são dignos de nota: “Ele faz aquelas imagens apontando a sua arma – a câmara é isso – a alguém que acaba de matar uma pessoa e que sabe que vai morrer. Não sabe o que se passa na cabeça daquele homem”, diz o fotógrafo do PÚBLICO. “É um acto de coragem, é certo, mas é sobretudo um trabalho de grande profissionalismo”, diz João Silva, fotojornalista luso-sul-africano já premiado pelo World Press Photo e membro do júri desta edição. “A coragem existe, diria eu, em todos os homens e mulheres que participaram no concurso, mas aqui temos uma grande imagem.”

É por causa desse “grande profissionalismo”, diz João Silva, fotógrafo reconhecido pelo seu trabalho em cenários de guerra (foi gravemente ferido em 2010 no Afeganistão) e pela sua cobertura do fim do apartheid na África do Sul (é um dos quatro membros do mítico Bang-Bang Club), que o fotojornalista da AP foi capaz de “fazer uma imagem que ainda dará que falar daqui a 50 anos”: “Esta é uma daquelas fotografias que dividem opiniões e que vão continuar a dividir. O que aconteceu no júri, com a discussão muito dura e o presidente a votar contra, é o que está a acontecer na sociedade. Podemos usar a palavra ‘sensacionalismo’ se quisermos, mas é muito mais do que isso – é uma imagem que retrata uma realidade brutal, um acto de ódio incrível… Aquele homem [o atirador] é o rosto do ódio e o fotógrafo está lá para os retratar – a ele, ao ódio…”

Um retrato que poderia ter saído de uma peça de teatro ou de uma produção lírica, com um “certo glamour” – “tudo parece perfeitamente encenado, como se alguém tivesse feito marcações no chão; até o morto está no sítio certo”, nota Luís Vasconcelos – mas que é a vida de todos os dias, “o mundo não-higienizado”, acrescenta Silva: “Neste ponto da história global temos de ser confrontados com imagens destas para reagir. A Europa está partida em bocadinhos, a Rússia é o que sabemos e os Estados Unidos estão perigosos. Tenho medo pelos meus filhos, não por mim. No meu caso, mais guerra menos guerra tanto faz, mas no deles o ódio conta – o ódio que muda o mundo sempre para pior.”

E quando um fotojornalista está no sítio certo à hora certa para ser testemunha desse ódio, o seu testemunho só pode ser uma fotografia.

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