A França obcecada com os árabes

Serge Bozon veio ao Festival do Estoril mostrar a sua quarta longa-metragem, Tip Top . Um filme muito contemporaneamente francês, mas adaptado da obra de um escritor galês, Bill James. E um filme que escapa a todas as classificações genéricas, sendo impossível definir o ponto em que passa da comédia ao policial e vice-versa. No centro, duas mulheres-polícias (Isabelle Huppert e Sandrine Kiberlain) que investigam o assassínio de um informador argelino da polícia francesa. Nas margens, aquilo que Bozon, em conversa com o PÚBLICO, definiu como "a obsessão dos franceses pelos imigrantes árabes".

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Serge Bozon no Lisbon & Estoril Film Festival LEFFEST
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Uma das cenas de Tip Top

Serge Bozon, francês nascido em 1972, apresentou no Lisbon & Estoril Film Festival  (Leffest) o seu quarto filme, Tip Top, que tem hoje a sua última exibição (Cinema Monumental, às 14h) no quadro da competição do festival. Ex-crítico de cinema que não é bem “ex” (ainda recentemente, nos Cahiers du Cinéma, era possível ler óptimas páginas suas sobre Jean Grémillon), cinéfilo enciclopedista, melómano “pop/rock” voraz, a sua curta obra como realizador nunca chegou ao circuito comercial português, ficando-se por festivais e pela Cinemateca. Mas merecia, pela elegância e beleza de filmes como Mods ou La France. Tip Top é provavelmente o seu filme mais intricado, mais “múltiplo”, inidentificável quanto a “géneros” (tanto uma comédia como um policial) e despido de referências cinéfilas imediatamente visíveis – fora a abertura, uma zaragata num bar, que podia vir de um filme de Walsh ou de Ford. Mas profundamente ligado à França contemporânea, e particularmente à “obsessão” (palavra de Bozon) que naquele país se vive actualmente com a imigração de origem árabe. Bozon esteve no Estoril para apresentar o seu filme, falámos com ele à procura de iluminar alguns dos mistérios de Tip Top.

Tip Top é um filme bastante surpreendente. Em La France, o seu filme anterior, muito cedo se percebia o modo de funcionamento do filme, o que esperar dele. Aqui não, há uma espécie de caos, de avanço em múltiplas direcções, que nos mantém intrigados até ao último plano.
Digamos que são estruturas muito diferentes. Em La France, seguíamos sempre o mesmo grupo de personagens [um bando de desertores do exército francês durante a I Guerra], num avanço contínuo e numa narrativa linear. Aqui há mais personagens, que raramente estão nos mesmos lugares ao mesmo tempo, e portanto há mais passagens de um espaço, e mais rupturas entre as personagens e o espaço. Em termos de tom, La France é um filme mais doce…


… Mais melancólico…
Mais melancólico. Mais abrupto, e creio que também mais divertido. De um ponto de vista formal, Tip Top é filmado e montado de uma maneira mais primitiva. Em La France, havia muitos movimentos de câmara, muito elaborados. Em Tip Top, o máximo que encontramos é aquela panorâmica, muito violenta, ao rosto de Samy Naceri. E depois há a música, que em La France e em Mods utilizei como instrumento para as mudanças no tom do filme, e aqui não.


Também o cenário, em termos sociais, é bastante diferente.
La France é a I Guerra, Mods é um tempo indefinido e Tip Top, sim, tem uma relação muito mais forte com a França contemporânea. Mesmo a luz…


Ia perguntar-lhe pela luz, a propósito daquele plano em que alguém abre uma janela…
É um plano sobreexposto, a imagem fica branca.


Exactamente. A partir desse momento, fiquei com a sensação de que o filme também era uma aventura fotográfica e, como nos belos filmes maniqueístas dos primórdios, se tratava de um combate entre o branco e o negro, a luz e a sombra…


Têm-me feito notar isso, e falado desse plano como a passagem ao limite de algo crucial no filme, mas não foi propositado. É verdade que há duas frases no filme que evocam a luz. A mulher árabe que diz que gosta de ir à janela ver a luz depois das tempestades. E quando a personagem de Sandrine Kiberlain diz que queria conhecer a luz da Argélia e lhe respondem que a poluição cega tudo. Isto é verdade, mas o meu ponto de partida era mais simples. Não sei se sabe, mas as esquadras de polícia em França são brancas. Um ambiente branco é muito difícil de filmar, isso colocava-nos muitos problemas, a mim e à minha irmã [Céline Bozon, directora de fotografia], chegou a haver a sugestão de pintarmos as paredes de azul, mas eu queria assumir o branco. E, uma noite, na Cinemateca Francesa, vi um filme de Herschel Gordon Lewis, Two Thousand Maniacs, um dos primeiros filmes gore, onde havia cenas num hotel com as paredes brancas e o branco era aceite como tal, sem gradações nem nuances, muito cru. Achei aquilo muito bonito, e foi essa maneira de filmar o branco que tentámos obter.


Em todo o caso, mais uma vez, é quase o contrário de La France, que tinha uma imagem muito aquosa, muito enleante. Em Tip Top, é áspera, agressiva. Este também foi filmado em película de 35mm?
Foi. E, sim, é exactamente o oposto. Quis que este filme fosse o contrário em quase tudo. E também mais económico, na narração e no decóupage. Não quis um filme austero, mas um filme onde se tivesse a sensação de ir apenas ao essencial. Além do mais, e porque, como você disse, a narrativa vai em muitas direcções e é muito digressiva, a mise en scène precisava de ir ao osso. Quanto mais a história era complicada, mais as cenas precisavam de ser filmadas de maneira económica, despida.


Se alguém lhe perguntar qual é o tema do filme, tem resposta?
Sim, teoricamente. Porque, em França, como sabe, o apoio financeiro ao filme obtém-se através do argumento e das notas de intenções, e é preciso responder à pergunta “Qual é o tema do filme?”. Em La France, a resposta era fácil: a deserção durante a I Guerra. Em Tip Top, é mais complicado, mas vou tentar: quais são os acontecimentos felizes que nos dão vontade de rebentar com tudo? É muito fácil responder se forem acontecimentos infelizes: um grande desgosto, etc. Mas quais são os acontecimentos felizes? Quis fazer um filme sobre esta espécie de violência da jubilação moral. É uma resposta teórica, claro. Porque, no mais concreto do filme, a relação com a França contemporânea, com a Argélia, confesso que não tenho uma resposta.


Como encontrou o romance [do escritor galês Bill James] que o argumento adapta? Com certeza não tinha nada a ver com a França nem com os imigrantes argelinos?
Não, passa-se em Inglaterra e é um romance muito cínico, daqueles onde tudo está podre, toda a gente engana toda a gente, todas as mulheres traem os maridos, etc. Quis atenuar isso, que era um “jogo de massacre” interessante, linguisticamente, mas que me parecia uma facilidade. Decidi mergulhar a história num ambiente mais popular, e fazer com que as mulheres protagonistas amassem verdadeiramente os seus maridos, mais ainda do que imaginavam. Foi uma maneira de quebrar um pouco do cinismo do romance, que me parecia uma facilidade antipoliticamente correcta.


É inesperada a maneira como o tema da imigração surge no filme. Há argelinos por todo o lado, como “nuvem” e como personagens definidas. Não vou dizer que é um filme “sociológico”, mas é uma observação perturbante sobre a França de hoje…
Sociológico não, mas social; para mim, é um filme social. É evidente que o que digo agora é fruto de já ter reflectido e pensado, não garanto que corresponda exactamente às minhas intenções iniciais. Mas é certo que sempre quis fazer um filme com árabes. Inicialmente, La France passava-se durante a Guerra da Argélia, no seio da FLN. Desisti, por razões de produção. Não sei de onde vem este meu desejo, porque não tenho quaisquer origens argelinas. Podia ter filmado Tip Top sem incluir os argelinos, mas penso que é pelo facto de eles lá estarem que o filme tem um ar contemporâneo. Porque não há nada mais contemporâneo em França do que a imigração árabe. Estão todos obcecados com ela, os governos de esquerda, os governos de direita. E as pessoas, claro. De modo que quis passar essa obsessão para o filme, mas de maneira modulada e expressa de várias maneiras. Inclusive sexuais: as mulheres do filme, por exemplo, só dormem com árabes. E a ideia era esta, mostrar como em França está toda a gente obcecada pelos árabes.
 


 
 

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