A fantasia coreana, a MPB ambiental e a elegância angolana no FMM

O Festival Músicas do Mundo despediu-se de Porto Covo com as cativantes actuações de Gustavito e de Waldemar Bastos. E viajou ainda ao american dream com escala na Coreia do Sul.

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Gustavito e a bicicleta Mário Pires/FMM
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Gustavito e a bicicleta Mário Pires/FMM
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Waldemar Bastos Mário Pires/FMM
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The Barberettes Mário Pires/FMM

E de repente, no final da noite de domingo em Porto Covo, erguem-se mãos no ar munidas de telemóveis, todos apontados para o palco onde estão as sul-coreanas Barberettes a iniciar o seu espectáculo. Parece um gesto corriqueiro e pouco digno de nota, mas, na verdade, é coisa rara no Festival Músicas do Mundo. Ajuda que as três cantoras estejam trajadas com umas vistosas roupas (e chapéus) de marinheiras, mas é provavelmente o reconhecimento a funcionar quando as câmaras dos telefones se levantam no momento em que as Barberettes arrancam com o tema que lhes dá nome — Barbara Ann, dos Beach Boys — numa linguagem doo-wop que alastra a todo o seu reportório. Os temas reconhecíveis no FMM não costumam imperar, daí que Barbara Ann pareça quase um corpo estranho, uma anomalia saudada com entusiasmo colectivo porque num festival que vive da descoberta o cancioneiro popular soa subitamente insólito.

Só que não podia ser de outra maneira. As Barberettes fazem a sua música a partir de um ponto de obsessão com a cultura norte-americana própria da tipificação do american dream, uns anos 50 e 60 em que tudo — música, publicidade, cinema… — parece embrulhado nessa aura de vida perfeita. Quando interpretam um tema chamado Fairy Tale parecem, afinal, estar a descrever a sua adesão voluntária a um mundo que (já) não existe e descobriram tardiamente na Internet; e quando frisam que são “da Coreia do Sul, não da Coreia do Norte” é impossível não questionar se não existe algum ponto de contacto no alheamento da realidade e nesse mergulho profundo num mundo de fantasia.

Paremos aqui e recuemos até ao início da noite de sábado: se os temas populares são uma raridade no FMM, será talvez menos surpreendente que o brasileiro Gustavito (acompanhado da banda A Bicicleta) anuncie a canção Camaleão borboleta como sendo possivelmente conhecida do público. E isto porque esse tema que Gustavito compôs a meias com o grupo Graveola passou por aquele mesmo palco há um ano (no espectáculo dos Graveola, precisamente). Não é que possa ter ficado gravada na memória de cada um dos então presentes, mas há uma certa persistência da memória em relação a muitos dos momentos do festival — são muitos aqueles que se lembram ainda, por exemplo, da inebriante passagem pela aldeia alentejana da dupla formada por Kayhan Kalhor e Erdal Erzincan, numa ininterrupta troca de melodias entre a tradição persa e a anatoliana. Como se a memória mais eficaz de ser recuperada fosse qualquer uma que dissesse respeito ao próprio festival, por via de uma construção afectiva comum.

Gustavito & a Bicicleta então e a sua ligação aos Graveola. Se o grupo de Belo Horizonte faz uma síntese soberba do que pode ser hoje a MPB, convocando Caetano, Gilberto Gil, Cartola, Mutantes e uma universalidade rockeira sem geografia definida mas que sempre faz paragem nos Beatles, Gustavito — parceiro de Luiz Gabriel Lopes dos Gravoela no trio TiãoDuá — não anda longe de tudo isto, com a diferença de que não se liga à electricidade, antes viaja pelo violão, como se defendesse para a música os mesmo recursos naturais de que enche o discurso das suas canções. De Rafael Fares canta Aflorou, relato de um encontro transcendental em pleno Carnaval — canção que virou hino do Pena de Pavão de Krishna, bloco carnavalesco sintonizado com os rituais e ensinamentos hindus. Canta-se em coro “todo mundo andando a pé” como um refrão de consciência ambiental em Aflorou, Gustavito grita contra Temer, Bolsonaro, Feliciano e “essa corja toda”, faz pontaria contra a mineradora Samarco que, em 2015, foi responsável por desabar um mar de lama sobre a paisagem do estado de Minas Gerais e vai enxertando com notável graciosidade o tropicalismo directamente nestes dias de 2017.

Depois de Gustavito, viria a beleza serena do angolano Waldemar Bastos, homem a quem há muito David Byrne se rendeu (Pretaluz saiu, em 1998, pela Luaka Bop do ex-Talking Heads). Ver Waldemar Bastos em palco é perceber como a música pode ser algo sem esforço, pode convocar Angola, Cabo Verde, Brasil, Portugal e os Estados Unidos dos blues e da soul quase sem se dar conta. Cada canção passa por tudo isto sem precisar de recorrer a citações explícitas, é como uma pequena explosão de sugestões que se desvela com a maior simplicidade que uma simples composição pode acolher. Não haverá grande novidade numa Muxima que o acompanha há 20 anos e o público sabe de cor, mas esse é também o encanto maior de Waldemar Bastos: uma música sem truques, que se celebra na partilha e numa assunção plena do passado.

Calmaria e festa na praça

Como aconteceu em anos anteriores, Porto Covo foi palco de uma ementa musical em que o ritmo festivo ficou quase sempre guardado para a derradeira actuação, arriscando sonoridades mais exigentes e intimistas no final de tarde e no início de noite. A resposta do público em concertos como o já referido de Kayhan Kalhor/Erdal Erzincan, The Unthanks em 2016 ou o solo de percussão do iraniano Mohammad Reza Mortazavi esta sexta-feira, com muito do público suspenso em músicas que não gozam de qualquer vitória antecipada, como muito acontece no mundo pop, é muitas vezes tão surpreendente quanto comovente. Ainda para mais numa praça rodeada de bandas de venda de bebidas e com entrada livre.

Mas estes cartazes obrigam também a uma gestão de expectativas feita com pinças. E, na noite de domingo, o alinhamento foi ingrato para Nessi Gomes. A folk de baixa rotação da cantora inglesa (filha de pais portugueses), delicada, suave-suavíssima, pintalgada de uma melancolia sempre cândida, não beneficiou em suceder ao festim da Orquestra Latinidade. Nem Nessi tem um reportório que permita rasgos como, por exemplo, os das britânicas também folk Kathryn Williams e Lisa Hannigan, nem havia muito por onde evitar a sensação de anti-clímax. Em vez de ser em crescendo, a noite teve uma travagem brusca, muito por culpa (uma culpa boa) da orquestra formada por representantes vários da Europa e da América Latina, primeiro reunidos numa residência artística do projecto Largo Residências, em Lisboa.

Anda tudo por ali aos trambolhões, canção napolitana, jazz manouche, forró desbragado, sambas grávidos de 10 géneros musicais diferentes, funaná em modo baile, flamenco de contrafacção, Noel Rosa transformado em swing de New Orleans como se tocado pelos Squirrel Nut Zippers. O bom é que nunca soam a manta de retalhos e ainda há espaço para, no meio da folia, algures entre Afonsinhos do Condado e B Fachada, contar a história de um Cajó escriturário há 20 anos, cuspido para o desemprego, num país à boleia de call-centers em disputa internacional pelas condições mais precárias. Uma forma de rir das desgraças ou de fazendo a festa não deixar as queixas de fora.

O PÚBLICO esteve no Festival Músicas do Mundo a convite da organização

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